
JULIO VILLANI | Samuel Titan
Do bestiário de Artur Pereira aos bichos de Lygia Clark, da Baleia de Graciliano Ramos ao Burrinho Pedrês de Guimarães Rosa, não faltam animais prodigiosos na arte brasileira. Cumpre agora integrar as criaturas de Júlio Villani a essa fauna – tomando-se porém o cuidado de preservar sua singularidade no seio dessa família imaginária. Sua singularidade ou, melhor dizendo, seu hibridismo fundamental, que se dá em muitas camadas.
Elas são objets trouvés, à Duchamp, mas são também um exercício risonho dos dons de metamorfose que são próprios da arte. São herdeiras de certo surrealismo parisiense, mas parecem nos remeter às memórias sensoriais de um menino do interior, que observa de sua própria perspectiva os objetos da casa, da cozinha, da fazenda. Sendo tridimensionais, são esculturas – mas não encenam para quem as contempla o espetáculo do escultor que golpeia a ganga bruta e extrai a forma a partir do informe; em vez de formão e cinzel, o alicate, o martelinho, o arame, a solda discreta, a fim de dobrar, prender, amarrar e pendurar.
Neste último sentido, muitas delas são móbiles à maneira de Calder – quer dizer, são e não são, pois continuamos a ver as partes heteróclitas que as constituem, como num desenho de coelho-e-lebre. E nisso, aliás, são brasileiríssimas, filhas do jeitinho e da gambiarra elevados à condição de arte, dotadas daquela graça etérea e desajeitada que as petecas têm. Se nascem de algumas operações manuais simples, nem por isso são simplórias: adivinha-se em cada uma delas a longa reflexão plástica, o mergulho na memória infantil e ainda a malícia sutil que se diverte com a alteração das proporções ou com o desvio das funções e usos originais dos objetos que servem de matéria-prima.
Estamos no coração do campo artístico moderno, sem dúvida, mas estamos também, numa reviravolta deliciosa, em terras americanas: mestre do entorse gentil, Villani prolonga, sorridente, a antiga tradição do trickster, aquela divindade malandra, muitas vezes de feição animal (coiote, corvo, raposa) que, em tantas mitologias do Novo Mundo, se compraz em ludibriar os demais deuses, subverter o destino fixado e abrir espaço para a vida e a transformação.

POR UM FIO | Samuel Titan
Como orientar-se no labirinto gentil de Júlio Villani? Deve haver maneiras e maneiras, é claro, mas uma delas talvez consista em inverter o método de Ariadne e seguir um fio não para sair, mas para entrar, sempre mais, no coração desse dédalo de obras de aparência muito diversa.
Pode-se puxar um dos fios bem materiais que o artista contrabandeia de outros domínios: fios de costura ou de bordado, barbantes e tirantes, correias e arames, às vezes acompanhados de fusos, carretéis ou bancadas que sugerem máquinas de costura; em todos esses casos, fios provenientes de práticas vernáculas, que Villani simultaneamente incorpora e desloca. Ou pode-se optar por seguir o curso desses fios sem espessura que são as linhas traçadas na superfície do papel ou da tela, pista essa que nos levará ao desenho como gesto fundamental da obra de Villani, pouco importa se bi ou tridimensional.
Com um reparo, porém: o desenho não é, aqui, o gesto tradicional, demiúrgico, de gerar criaturas a partir da matéria informe, da tela ou da folha em branco. Os fios e linhas que Villani traça (estica, pendura, estende) servem antes para ligar (vincular, amarrar, enlaçar), para sugerir constelações de seres, formas, regiões da experiência que pareciam apartadas até então. Constelações, não construções: avessas às hierarquias, elas são movidas pela memória e pelo erotismo, que não se fazem de rogados para alterar dimensões e finalidades, desalinhar o alinhado, converter a escrita em desenho, redimir os restos das coisas, conferindo-lhes uma nova vida, ao mesmo tempo instável e superlativa – muitas vezes, literalmente pendurada por um fio. A operação é complexa, e adivinha-se, atrás de cada “sacada” ou “trouvaille”, um longo processo de síntese. Síntese de um aprendizado artístico que vem do surrealismo e passa pelas novas vanguardas dos anos sessenta e setenta, mas que vem e passa igualmente por uma recuperação de certa arte brasileira e de um passado tanto íntimo como interiorano; síntese, finalmente, do menino de Marília com o artista de Paris.
Pensando bem, para que sair do labirinto, onde há tantas portas ainda por abrir?