CONTOS DE GULLIVER | Philippe Piguet  

É preciso ter visto seu ateliê para apreender o universo quase improvável de Julio Villani. Radicado há anos em Paris, o artista é à imagem de sua produção: dificilmente categorizável. Ao menos ele nunca está onde é esperado, ou onde pensamos encontrá-lo. É que Villani é um inventor, e adora apossar-se de uma situação, de imagens ou de materiais, para reinvesti-los sem delongas e fazê-los adotar uma nova linguagem, desviar para uma visão defasada, sem jamais privar-se de humor, nem de crítica, nem de poesia. Pelo contrário: ele gosta de mesclar isso tudo, do seu jeito, longe das trilhas balizadas ou dos ventos encanados da moda do momento. 

A dimensão lúdica de seu trabalho não provém nem de uma deserção que lhe permita ignorar o real, nem de uma postura assumida para mascará-lo e responder assim a sabe-se lá que inquietude. É, pelo contrário, uma maneira de salientar o “pouco de realidade” a que André Breton consagrou um importante texto em 1927 – Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade – e que Jorge Luís Borges revisitou em 1941 em sua obra intitulada Ficções. A reflexão sobre o fantástico que este último aí desenvolve, arrimando-o em uma relação consubstancial à noção de literatura – concebida sobretudo como uma fabulação e nos projetando aos confins da experiência – encontra um eco particularmente manifesto na abordagem plástica de Julio Villani.

A exemplo do escritor, sua arte busca uma forma de antinaturalismo que se abstém de qualquer propósito narrativo. Ela remete à invalidação de todo referencial cognitivo, procura emboscar o real nas convenções de seus prenúncios, abala os alicerces de toda racionalidade intelectual. Em suma, a arte de Julio Villani é regida por um pensamento subversivo que lhe permite por em dúvida o real. Assim, sua noção de representação não escapa da metáfora, posto que a realidade à qual nos remete não pode ser apreendida senão no contexto de um discurso metafórico.

O inventário da obra de Julio Villani inclui uma escultura composta por três imensos bilboquês em madeira torneada, que o artista instala no chão como as peças de um jogo abandonado por gigantes de passagem. A brincadeira consiste em atirar a bola para o ar de modo que, ao cair, ela se encaixe na haste. Símbolo de uma perfeita completude entre duas entidades destinadas a associar-se, o bilboquê é um objeto carregado de sentido, ao mesmo tempo emblemático da relação entre a vida e a morte, o homem e a mulher, o particular e o geral, o yin e o yang etc., o conjunto bola-haste-corda compondo uma trindade singular. Aqui, não são mais simples brinquedos, mas elementos de um teatro que sua monumentalidade remete aos contos que têm como heróis Pantagruel, Gulliver ou Micromégas. [1]

O artista não levou muito tempo para reagir e replicar à arquitetura da abadia de Saint-Jean d’Orbestier – particularmente ao possante jogo das ogivas em pedra clara que ritmam o espaço ao longo da nave. Villani nelas viu a forma abaulada dos frágeis arcos metálicos sob os quais o jogador, fazendo uso de um malho e seguindo um determinado percurso, deve fazer desfilar as bolas do jogo de croquet. Julio Villani gosta de subverter os dados com os quais é levado à compor, seja deturpando-lhes a função, seja proscrevendo-os a outro registro, seja transformando-os em sua essência profunda até atribuir-lhes uma nova identidade. Aqui, ele optou por transmutar o recinto sacro em área de jogo, mas um jogo antigo, que sua monumentalização catapulta ao grau de fantasia, quiçá de fábula – para resgatar os dois termos borgeanos. 

Contrapondo patrimônio, religião, humor e visão onírica, Julio Villani inscreve sua proposta em cheio no campo da pós-modernidade. Um quê de surrealismo, se não de surreal, permeia o que elabora; algo que lembra a recomendação que fizera André Breton a suas tropas, encorajando-as a dar corpo ao que viam em sonhos. Com uma diferença notável: Julio Villani é um sonhador acordado. O espírito e os olhos sempre atentos ao mundo que o cerca, percebe rapidamente sua “pouca realidade” e, em um piscar de olhos, transforma-a em outra coisa, totalmente inédita. Parece mágica – no melhor sentido da fórmula-culto “mágicos da terra”, usada para definir o que são os artistas – e nos convida a imaginar o mundo à margem dos cânones e das convenções. 

De uma coisa pelo menos Villani pode ter certeza: não sairemos ilesos da experiência que ele nos propõe.

[1]  N.T. Gigante de 32 km de altura que falava mil línguas, Micromégas – personagem de um conto de Voltaire – é exilado de sua estrela natal Sírius e viaja pelo universo em busca de um mundo melhor.

EULOGIA DA POUCA REALIDADE | Fibra de vidro, metal, laca industrial | Bolas 125 cm de diâmetro, taco 485 cm de altura | Igreja Saint Jean d’Orbestier, Château d'Olonne | 2016

EULOGIA DA POUCA REALIDADE | Fibra de vidro, metal, laca industrial | Bolas 125 cm de diâmetro, taco 485 cm de altura | Igreja Saint Jean d’Orbestier, Château d'Olonne | 2016

BILBOQUETS OU A ORIGEM DO MUNDO | Madeira torneada, corda de cânhamo | Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2004

A LINHA DO PENSAMENTO | Objetos, cabo de aço | Musée des Beaux-arts d'Agen, 1998

MEMÓRIA DOS MEUS CEM ANOS | Paço Imperial, Rio de Janeiro | 2009

MEMÓRIA DOS MEUS CEM ANOS | Papel e óleo sobre impressão ink jet sobre alumínio, molduras em madeira e vidro | "Made by Brazilians", Hôpital Matarazzo, São Paulo | 2014

TAMBORETES | Madeira, corda em cânhamo, metal | 165 x 87 x 94 cm | 2012 | Chapelle de la Visitation, Thonon les Bains, 2012

TAMBORETES (RETRATO DE LEON F.) | Madeira, corda em cânhamo, metal, papel, motor | 165 x 87 x 94 cm | 2012

TRÊS ANDAIMES PARA UM RETRATO | Aço | 225 x 122 x 87 cm , 187 x 120 x 77 cm , 180 x 88 x 90 cm | 2012 | Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, 2019

CINCO CONTINENTES | Objetos, madeira | 17 x 37,5 x 19 cm | 2004 | Maison de l'Amérique latine, Paris, 2005

CINCO CONTINENTES | Madeira, laca industrial | 150 x 262 x 133 cm | Musée de l'Hôtel Dieu, Mantes-la-Jolie | 2005

VENUS ANTROPOFÁGICA | Objetos, arame | 154 cm de altura | 1998 | Musée Zadkine, Paris, 2010

VENUS ANTHROPOFÁGICA | Objetos, cabo de aço, fibra de vidro | 15 m de altura | Galeries Lafayette, Paris, 2005

CORAÇÃO | Aço, laca industrial | Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2002

CORAÇÃO e SONHADOR | Aço, laca industrial | Parque de esculpturas Sesc Itaquera

NÃO SE PODE PENSAR A CLAUSURA DO QUE NÃO TEM FIM | Fios de lã e de polipropileno sobre voile de algodão | 2340 x 780 cm | Abadia do Thoronet | CMN / Palais de Tokyo | 2019

NÃO SE PODE PENSAR A CLAUSURA DO QUE NÃO TEM FIM | Fios de lã e de polipropileno sobre voile de algodão | 2340 x 780 cm | Durante a realização, Palais de Tokyo, Paris, 2019

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Tickets de metrô, grampos | 4 x 6 x 9,8 cm | 2004

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Folha de alumínio, laca industrial | 45 x 60 x 98 cm | 2005

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Tickets de metrô, grampos | 4 x 7 x 7,5 cm | 2004

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Folha de alumínio, laca industrial | 42 x 80 x 88 cm | 2005

CONTOS DE GULLIVER | Philippe Piguet  

É preciso ter visto seu ateliê para apreender o universo quase improvável de Julio Villani. Radicado há anos em Paris, o artista é à imagem de sua produção: dificilmente categorizável. Ao menos ele nunca está onde é esperado, ou onde pensamos encontrá-lo. É que Villani é um inventor, e adora apossar-se de uma situação, de imagens ou de materiais, para reinvesti-los sem delongas e fazê-los adotar uma nova linguagem, desviar para uma visão defasada, sem jamais privar-se de humor, nem de crítica, nem de poesia. Pelo contrário: ele gosta de mesclar isso tudo, do seu jeito, longe das trilhas balizadas ou dos ventos encanados da moda do momento. 

A dimensão lúdica de seu trabalho não provém nem de uma deserção que lhe permita ignorar o real, nem de uma postura assumida para mascará-lo e responder assim a sabe-se lá que inquietude. É, pelo contrário, uma maneira de salientar o “pouco de realidade” a que André Breton consagrou um importante texto em 1927 – Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade – e que Jorge Luís Borges revisitou em 1941 em sua obra intitulada Ficções. A reflexão sobre o fantástico que este último aí desenvolve, arrimando-o em uma relação consubstancial à noção de literatura – concebida sobretudo como uma fabulação e nos projetando aos confins da experiência – encontra um eco particularmente manifesto na abordagem plástica de Julio Villani.

A exemplo do escritor, sua arte busca uma forma de antinaturalismo que se abstém de qualquer propósito narrativo. Ela remete à invalidação de todo referencial cognitivo, procura emboscar o real nas convenções de seus prenúncios, abala os alicerces de toda racionalidade intelectual. Em suma, a arte de Julio Villani é regida por um pensamento subversivo que lhe permite por em dúvida o real. Assim, sua noção de representação não escapa da metáfora, posto que a realidade à qual nos remete não pode ser apreendida senão no contexto de um discurso metafórico.

O inventário da obra de Julio Villani inclui uma escultura composta por três imensos bilboquês em madeira torneada, que o artista instala no chão como as peças de um jogo abandonado por gigantes de passagem. A brincadeira consiste em atirar a bola para o ar de modo que, ao cair, ela se encaixe na haste. Símbolo de uma perfeita completude entre duas entidades destinadas a associar-se, o bilboquê é um objeto carregado de sentido, ao mesmo tempo emblemático da relação entre a vida e a morte, o homem e a mulher, o particular e o geral, o yin e o yang etc., o conjunto bola-haste-corda compondo uma trindade singular. Aqui, não são mais simples brinquedos, mas elementos de um teatro que sua monumentalidade remete aos contos que têm como heróis Pantagruel, Gulliver ou Micromégas. [1]

O artista não levou muito tempo para reagir e replicar à arquitetura da abadia de Saint-Jean d’Orbestier – particularmente ao possante jogo das ogivas em pedra clara que ritmam o espaço ao longo da nave. Villani nelas viu a forma abaulada dos frágeis arcos metálicos sob os quais o jogador, fazendo uso de um malho e seguindo um determinado percurso, deve fazer desfilar as bolas do jogo de croquet. Julio Villani gosta de subverter os dados com os quais é levado à compor, seja deturpando-lhes a função, seja proscrevendo-os a outro registro, seja transformando-os em sua essência profunda até atribuir-lhes uma nova identidade. Aqui, ele optou por transmutar o recinto sacro em área de jogo, mas um jogo antigo, que sua monumentalização catapulta ao grau de fantasia, quiçá de fábula – para resgatar os dois termos borgeanos. 

Contrapondo patrimônio, religião, humor e visão onírica, Julio Villani inscreve sua proposta em cheio no campo da pós-modernidade. Um quê de surrealismo, se não de surreal, permeia o que elabora; algo que lembra a recomendação que fizera André Breton a suas tropas, encorajando-as a dar corpo ao que viam em sonhos. Com uma diferença notável: Julio Villani é um sonhador acordado. O espírito e os olhos sempre atentos ao mundo que o cerca, percebe rapidamente sua “pouca realidade” e, em um piscar de olhos, transforma-a em outra coisa, totalmente inédita. Parece mágica – no melhor sentido da fórmula-culto “mágicos da terra”, usada para definir o que são os artistas – e nos convida a imaginar o mundo à margem dos cânones e das convenções. 

De uma coisa pelo menos Villani pode ter certeza: não sairemos ilesos da experiência que ele nos propõe.

[1]  N.T. Gigante de 32 km de altura que falava mil línguas, Micromégas – personagem de um conto de Voltaire – é exilado de sua estrela natal Sírius e viaja pelo universo em busca de um mundo melhor.

EULOGIA DA POUCA REALIDADE | Fibra de vidro, metal, laca industrial | Bolas 125 cm de diâmetro, taco 485 cm de altura | Igreja Saint Jean d’Orbestier, Château d'Olonne | 2016

EULOGIA DA POUCA REALIDADE | Fibra de vidro, metal, laca industrial | Bolas 125 cm de diâmetro, taco 485 cm de altura | Igreja Saint Jean d’Orbestier, Château d'Olonne | 2016

EULOGIA DA POUCA REALIDADE | Fibra de vidro, metal, laca industrial | Bolas 125 cm de diâmetro, taco 485 cm de altura | Igreja Saint Jean d’Orbestier, Château d'Olonne | 2016

BILBOQUETS OU A ORIGEM DO MUNDO | Madeira torneada, corda de cânhamo | Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2004

A LINHA DO PENSAMENTO | Objetos, cabo de aço | Musée des Beaux-arts d'Agen, 1998

MEMÓRIA DOS MEUS CEM ANOS | Paço Imperial, Rio de Janeiro | 2009

MEMÓRIA DOS MEUS CEM ANOS | Papel e óleo sobre impressão ink jet sobre alumínio, molduras em madeira e vidro | "Made by Brazilians", Hôpital Matarazzo, São Paulo | 2014

TAMBORETES | Madeira, corda em cânhamo, metal | 165 x 87 x 94 cm | 2012 | Chapelle de la Visitation, Thonon les Bains, 2012

TAMBORETES (RETRATO DE LEON F.) | Madeira, corda em cânhamo, metal, papel, motor | 165 x 87 x 94 cm | 2012

TRÊS ANDAIMES PARA UM RETRATO | Aço | 225 x 122 x 87 cm , 187 x 120 x 77 cm , 180 x 88 x 90 cm | 2012 | Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, 2019

CINCO CONTINENTES | Objetos, madeira | 17 x 37,5 x 19 cm | 2004 | Maison de l'Amérique latine, Paris, 2005

CINCO CONTINENTES | Madeira, laca industrial | 150 x 262 x 133 cm | Musée de l'Hôtel Dieu, Mantes-la-Jolie | 2005

VENUS ANTROPOFÁGICA | Objetos, arame | 154 cm de altura | 1998 | Musée Zadkine, Paris, 2010

VENUS ANTHROPOFÁGICA | Objetos, cabo de aço, fibra de vidro | 15 m de altura | Galeries Lafayette, Paris, 2005

CORAÇÃO | Aço, laca industrial | Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2002

CORAÇÃO e SONHADOR | Aço, laca industrial | Parque de esculpturas Sesc Itaquera

NÃO SE PODE PENSAR A CLAUSURA DO QUE NÃO TEM FIM | Fios de lã e de polipropileno sobre voile de algodão | 2340 x 780 cm | Abadia do Thoronet | CMN / Palais de Tokyo | 2019

NÃO SE PODE PENSAR A CLAUSURA DO QUE NÃO TEM FIM | Fios de lã e de polipropileno sobre voile de algodão | 2340 x 780 cm | Durante a realização, Palais de Tokyo, Paris, 2019

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Tickets de metrô, grampos | 4 x 6 x 9,8 cm | 2004

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Folha de alumínio, laca industrial | 45 x 60 x 98 cm | 2005

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Tickets de metrô, grampos | 4 x 7 x 7,5 cm | 2004

SÉRIE ARQUITETURAS MIGRATÓRIAS | Folha de alumínio, laca industrial | 42 x 80 x 88 cm | 2005

CONTOS DE GULLIVER | Philippe Piguet  

É preciso ter visto seu ateliê para apreender o universo quase improvável de Julio Villani. Radicado há anos em Paris, o artista é à imagem de sua produção: dificilmente categorizável. Ao menos ele nunca está onde é esperado, ou onde pensamos encontrá-lo. É que Villani é um inventor, e adora apossar-se de uma situação, de imagens ou de materiais, para reinvesti-los sem delongas e fazê-los adotar uma nova linguagem, desviar para uma visão defasada, sem jamais privar-se de humor, nem de crítica, nem de poesia. Pelo contrário: ele gosta de mesclar isso tudo, do seu jeito, longe das trilhas balizadas ou dos ventos encanados da moda do momento. 

A dimensão lúdica de seu trabalho não provém nem de uma deserção que lhe permita ignorar o real, nem de uma postura assumida para mascará-lo e responder assim a sabe-se lá que inquietude. É, pelo contrário, uma maneira de salientar o “pouco de realidade” a que André Breton consagrou um importante texto em 1927 – Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade – e que Jorge Luís Borges revisitou em 1941 em sua obra intitulada Ficções. A reflexão sobre o fantástico que este último aí desenvolve, arrimando-o em uma relação consubstancial à noção de literatura – concebida sobretudo como uma fabulação e nos projetando aos confins da experiência – encontra um eco particularmente manifesto na abordagem plástica de Julio Villani.

A exemplo do escritor, sua arte busca uma forma de antinaturalismo que se abstém de qualquer propósito narrativo. Ela remete à invalidação de todo referencial cognitivo, procura emboscar o real nas convenções de seus prenúncios, abala os alicerces de toda racionalidade intelectual. Em suma, a arte de Julio Villani é regida por um pensamento subversivo que lhe permite por em dúvida o real. Assim, sua noção de representação não escapa da metáfora, posto que a realidade à qual nos remete não pode ser apreendida senão no contexto de um discurso metafórico.

O inventário da obra de Julio Villani inclui uma escultura composta por três imensos bilboquês em madeira torneada, que o artista instala no chão como as peças de um jogo abandonado por gigantes de passagem. A brincadeira consiste em atirar a bola para o ar de modo que, ao cair, ela se encaixe na haste. Símbolo de uma perfeita completude entre duas entidades destinadas a associar-se, o bilboquê é um objeto carregado de sentido, ao mesmo tempo emblemático da relação entre a vida e a morte, o homem e a mulher, o particular e o geral, o yin e o yang etc., o conjunto bola-haste-corda compondo uma trindade singular. Aqui, não são mais simples brinquedos, mas elementos de um teatro que sua monumentalidade remete aos contos que têm como heróis Pantagruel, Gulliver ou Micromégas. [1]

O artista não levou muito tempo para reagir e replicar à arquitetura da abadia de Saint-Jean d’Orbestier – particularmente ao possante jogo das ogivas em pedra clara que ritmam o espaço ao longo da nave. Villani nelas viu a forma abaulada dos frágeis arcos metálicos sob os quais o jogador, fazendo uso de um malho e seguindo um determinado percurso, deve fazer desfilar as bolas do jogo de croquet. Julio Villani gosta de subverter os dados com os quais é levado à compor, seja deturpando-lhes a função, seja proscrevendo-os a outro registro, seja transformando-os em sua essência profunda até atribuir-lhes uma nova identidade. Aqui, ele optou por transmutar o recinto sacro em área de jogo, mas um jogo antigo, que sua monumentalização catapulta ao grau de fantasia, quiçá de fábula – para resgatar os dois termos borgeanos. 

Contrapondo patrimônio, religião, humor e visão onírica, Julio Villani inscreve sua proposta em cheio no campo da pós-modernidade. Um quê de surrealismo, se não de surreal, permeia o que elabora; algo que lembra a recomendação que fizera André Breton a suas tropas, encorajando-as a dar corpo ao que viam em sonhos. Com uma diferença notável: Julio Villani é um sonhador acordado. O espírito e os olhos sempre atentos ao mundo que o cerca, percebe rapidamente sua “pouca realidade” e, em um piscar de olhos, transforma-a em outra coisa, totalmente inédita. Parece mágica – no melhor sentido da fórmula-culto “mágicos da terra”, usada para definir o que são os artistas – e nos convida a imaginar o mundo à margem dos cânones e das convenções. 

De uma coisa pelo menos Villani pode ter certeza: não sairemos ilesos da experiência que ele nos propõe.

[1]  N.T. Gigante de 32 km de altura que falava mil línguas, Micromégas – personagem de um conto de Voltaire – é exilado de sua estrela natal Sírius e viaja pelo universo em busca de um mundo melhor.