POUR UMA DOMESTICAÇÃO LÚDICA DA HISTÓRIA | Michael Asbury

No estúdio do Júlio Villani, cercado da sua produção visivelmente heterogênea, o que acaba por transparecer enquanto falo com ele é a sensação de que a simultaneidade (como ele costuma chamá-la) de formas e técnicas de seu trabalho denota a constância do seu processo criativo.

Isto não significa que o caráter múltiplo da sua obra é induzido pelos aspectos operacionais que ela adota. Pelo contrário, boa parte do seu trabalho emana da junção de uma sensibilidade subjetiva à uma maneira muito particular de apreender preferências históricas na arte. Cada uma destas duas vertentes surge de suas deslocações geográficas – e das mudanças culturais que estas acarretam. Villani incorpora sua sensibilidade e as referências à História da arte em seu trabalho através do uso de alter egos, por vezes fictícios – pela adoção de pseudônimos, como já fez no passado – ou de alusões à estética das vanguardas do século 20 e às práticas das figuras históricas tutelares.

Às vezes estas apropriações aparecem de forma explícita, em outras elas se fazem discretas. Em ambos os casos, a simultaneidade de estéticas e técnicas parece se acompanhar de uma segunda sincronia articulando diferentes formas de memória, conjugando o pessoal e o artístico-dependente, o subjetivo e o compartilhado.

Sua carreira artística se caracteriza em seus primórdios pelo uso de formas genericamente geométricas, predominantemente pretas e brancas – as quais se transformavam pela repetição em outras formas, seguindo um processo de subdivisão e multiplicação de caráter assaz orgânico. Percebo aqui uma conexão com o livro De crescimento e Forma de D’Arcy Thompson, e por ele com o curso Processo de desenvolvimento ministrado por Richard Hamilton e Victor Pasmore no King’s College, Universidade de Durham em Newcastle-Upon-Tyne nos anos 1950, inspirado por sua vez nos métodos desenvolvidos na Bauhaus.

De maneira semelhante, a obra de Villani evolui tanto formalmente quanto conceitualmente graças à uma percepção histórica reconhecendo a vastidão dos horizontes culturais, afirmando que cultura é inevitavelmente referencial — e que é da repetição que brota a originalidade.

É natural que tenha adotado o espelho e a tesoura como seus meios de duplicar, de multiplicar seus próprios passos, num processo análogo ao que usa para perfurar camadas históricas, fazendo uma fluir na outra, entremeando qualidades, contaminando-as mutuamente.

Este ensaio, uma tentativa fragmentária de reunir algumas de suas explorações, propõe um acesso possível a estas diferentes formas de simultaneidade, encadeando textos sob a estrutura linear de um livro. Como um jogo de cartas, estes poderiam ser embaralhados e reordenados para contarem a mesma história com outra entonação, quiçá com um outro sotaque.

ALMOST READYMADE | Michael Asbury

Almost Ready-Made é o nome genérico de uma série de trabalhos que nasce do desejo irresistível de Villani de brincar com a arte, enquanto a leva na maior seriedade. Entre eles encontram-se seus divertidos Pássaros, assemblages realizadas por um processo de intervenção mínima sobre objetos domésticos garimpados. Se a série parece destoar do resto de sua obra, particularmente de sua produção pictórica, é porque materializa a fragmentação cultivada preciosamente pelo artista.

Os Pássaros se referem a uma gênese ou pelo menos a sua busca. Eles tentam retomar o fio do compromisso primeiro do artista com a criação durante sua infância: o prazer da construção de brinquedos e objetos na oficina da fazenda paterna, à partir de toda e qualquer coisa que se lhe caísse em mãos. Eles surgem então como uma busca da nascente do ímpeto artístico, ainda que, em seus primórdios, esses esboços infantis não constituíssem propriamente obras de arte. Ou sim, porque uma origem só se justifica se for seguida de cópias, as quais cunham o “primeiro” como “original” – enquanto simultaneamente o fazem desaparecer, se dissipar.

Cronologicamente, os Pássaros de Villani viram Almost Ready-Mades no momento em que Julio vira um Almost French artist, um artista quase francês. Eles devem tanto ao seu novo meio cultural quanto à popular tradição artesanal brotam frequentemente de utensílios culinários garimpados nos mercados de pulgas parisienses. Villani afirma que não é ele quem impõe novas identidades aos objetos, mas que estes lhe ditam as possibilidades.

Este processo, com a qual podemos coletivamente nos identificar, existe no mínimo desde Leonardo da Vinci, que via cavalos de batalha nas manchas de umidade das paredes. Os Pássaros lembram também obras de artistas como Brancusi, Meret Oppenhein, Calder e Picasso. Em outras palavras, o processo lembra o espírito dada de recuperação e sua irreverente transformação de sisudos cânones culturais em objetos alegres e brincalhões, carregados de humor e ironia.

Em outras assemblages da série, Villani associa mais abertamente brinquedos com heranças da história da arte. Sua Véus antropófaga transforma uma banal boneca de plástico em um totem moderno.

Em seu célebre Manifesto Antropofágico de 1928, o poeta Oswald de Andrade compara a condição do Brasileiro moderno com a dos nativos Tupis Guaranis, indígenas canibais que devoravam os colonizadores Portugueses, ilustrando assim a maneira pela qual a cultura européia podia ser irreverentemente incorporada, distorcida, zombada ou rejeitada. Oswald cultivava um sentimento de identidade nacional particularmente irônico ou paradoxal, como demonstrado por sua paródia do Hamlet de Shakespeare no que se transformaria na pedra angular do seu Manifesto: “Tupi or not Tupi, that is the question”.

Mencionando Freud, Oswald afirma que a Antropofagia é a transformação do inimigo sagrado em totem graças à sua ingestão. O poeta proclamava que a antropofagia era a ingestão do inimigo sagrado, de maneira a, segundo Freud, metamorfosea-lo de tabu em totem. Da mesma forma que o Totem e tabu de Freud condensa nossa psique coletiva primordial no cas singular de um paciente, Villani apresenta uma venus singular, construída à  partir de uma multitude de pequenas figurinos ingurgitadas, que por sua vez conferem à boneca seu caráter totêmico. A Venus se apresenta assim como um manifesto de seu impulso criativo, vinculando o singular através do coletivo.

O que vemos aqui em andamento é o processo que caracteriza a totalidade da obra de Villani, consistindo em justapor no mesmo plano diversas formas de memória, tecendo o subjetivo ao coletivo, as especificidades culturais aos grandes capítulos da História da arte.

ARQUITETURAS | Michael Asbury

As Arquiteturas de Villani são esboços riscados rapidamente com carvão sobre tinta acrílica ou outra base opaca. Os desenhos são realizados sobre a tinta ainda úmida: os traços por ela absorvidos ganham qualidade pictórica, enquanto a tinta é maculada pelo carvão. Assim, tecnicamente, elas não são exatamente pinturas, nem apenas desenhos, mas algo intermediário.

Esse “entre-dois” permeia de maneira difusa a própria composição. Frequentemente, a interseção dos traços ocorre fora do quadro – como se o artista, ao forjar as linhas de ancoragem, tivesse composto uma imagem maior e decidido emoldurar, capturar e colorir no retângulo da tela apenas uma fração do todo.

Para Villani, o que importa é que as estruturas surjam de maneira espontânea. Isso indica sua postura ante o ato de desenhar: a do simples prazer de traçar uma linha. Esta liberdade é portadora de uma serialidade intrínseca. Os desenhos são constituídos por fragmentos podendo ser descritos como concretos: formas geométricas aparentemente desprovidas de qualquer valor figurativo, não representando nem se abstraindo da realidade.

As mesmas formas concretas aparecem em uma série de colagens monocromáticas sobre papel; na série das Arquiteturas no entanto, enraizadas pelas linhas em carvão, materializadas pelo uso da cor, tornam-se quase representações de espaços arquiteturais. Nossa percepção confere a esses ligeiros traços sobre tinta fresca uma qualidade espacial, ausente – ou pelo menos não tão aparente – nas diáfanas colagens.

Discorrendo sobre as Arquiteturas, Villani cita Lygia Clark e sua teoria da linha orgânica, formada pela junção de dois planos. É dessa maneira que as linhas surgem na série, para em seguida dissiparem-se, fundindo-se aos planos. Como se o artista estivesse rebobinando a herança construtivista rumo aos seus primórdios, até Joaquín Torres-García talvez, e o conflito entre os artistas geométricos que levou Theo van Desbourg a cunhar a expressão “arte concreta”. “Nada é mais real do que uma linha, uma cor, uma superfície”, afirmou, ao professar uma arte na qual os elementos pictóricos não fossem “abstraídos” do mundo, mas tivessem por único significado sua própria realidade.

O que interessa Villani contudo não são as origens, mas o desdobramento das referências históricas em sua obra. Assim, uma reviravolta singular opera-se na série Arquiteturas: infletindo a arte concreta no sentido da abstração, ele nos apresenta um espaço quase-figurativo, em que o concreto da linha, da cor e da superfície defendido por van Doesburg se mistura à realidade afetiva de um Torres-García.

EXPROPRIAÇÕES / APROPRIAÇÕES | Michael Asbury

Quando se defronta às formas e teorias da história da arte, Villani não deixa transparecer em seu propósito qualquer ortodoxia ou intransigência; ele adota uma postura lúdica e curiosa, atento aos paradoxos, que ele explora em seguida em disjunções irreverentes.

Na série Expropriações / Apropriações, ele parece dialogar diretamente com o conceito de museu imaginário desenvolvido por André Malraux, segundo o qual a democratização da arte dependeria de sua reprodução fotográfica. Usando como medida cartões postais e convites de exposições com exemplos arquetípicos de obras que de tão reproduzidas tornaram-se quase universais, o artista masca e rói essas imagens de massa, no que poderia se assemelhar a ume exercício antropofágico. Operando uma re-individualização das obras, ele inverte a perspectiva benjaminiana descrita em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

Acompanhando o artista, também o médium é convidado ao banquete: as reproduções são literalmente devoradas pela tinta; elas aparecem como deglutidas, imersas na massa pictórica. A tinta é assim o principal agente ativo do processo: ela emoldura as reproduções fotográficas em espessas camadas, ao mesmo tempo em que se infiltra nos orifícios que o artista realiza nos postais, lhes conferindo uma nova aura.

Ao perfurar diferentes camadas históricas, fazendo com que uma desague na outra, Villani faz despontar orelhas de coelho em um retrato de Rembrandt, a Odalisca de Ingres piscar o olho para a intervenção de Martial Raysse, enquanto um Picasso mais maroto do que nunca parece prestes a pousar as mãos cobertas de tinta sobre o Violino de Ingres de Man Ray.

É interessante notar que Villani apresenta essa série juntamente com um vídeo intitulado Complexo de papagaio, em que o pássaro –  intrinsecamente associado à repetição – é apresentado picotando cartões postais, dos vendidos aos milhões, de imagens icônicas da Historia da arte. O papagaio, compenetrado, reduz as reproduções (a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, uma fotografia de Picasso, o Abapuru de Tarsila do Amaral) a migalhas, e acaba por roer a própria imagem.

“A repetição é uma forma de mudança”: é o que se lê em uma carta do jogo de baralho Estratégias obliquas de Brian Eno, destinado a instigar o processo criativo. Todos os artistas sabem disso. Villani faz questão de demonstrá-lo.

MÁQUINAS & ESCULTURAS | Michael Asbury

As máquinas e esculturas de Villani negam alegremente – e por vezes perversamente – sua funcionalidade. Seja através de um mecanismo sofisticado ou de um artifício elegantemente simples, as obras representam frequentemente objetos à beira do movimento ou, ao contrário, condenados por sua escala imponente à imobilidade eterna.

Em Domicílio Fixo, uma casinha de madeira inserida numa carriola de brinquedo foi posta sobre uma esteira rolante, estendida sobre uma mesa Thonet. A esteira, acionada por um motor, expõe um diagrama, uma espécie de cartografia vital ligando lugares e momentos do percurso do artista, que aparece em vários de seus trabalhos. A carriola parece pronta a disparar – mas permanece estacionária, mantida por um fino barbante preso a parede, o qual preserva o status quo e sublinha a fragilidade do equilíbrio.

Se Ar de Paris, contendo a essência caseira engarrafada, foi a maneira encontrada por Duchamp para rir de sua condição de exilado em Nova Iorque, a máquina celibatária de Villani brinca com esta idéia a partir de um ponto de vista oposto. A sombria apelação “sem domicilio fixo”, que descreve a condição involuntária e vagante de um lugar de residência temporário ao próximo, é aqui ledamente encenada como uma reflexão autobiográfica, clamando: eu sou constante, é todo o entorno que persiste em mudar.

A mesma casinha aparece na instalação Cinco Continentes, mas desta vez reproduzida em cinco exemplares e em uma escala que transcende o brinquedo inocente, tomando proporções quase ameaçadoras. As casas ainda repousam sobre rodas, mas a grande dimensão confere ao conjunto uma fixidade inalienável. Os artifícios são outros, a negação do movimento é a mesma.

Estas obras constituem — através das contradições e paradoxos que apresentam — eloqüentes auto-retratos de um artista em constante movimento e transformação.

A melhor imagem do processo criativo de Villani é no entanto oferecida por seus Bilboquês ou A Origem do Mundo. Nela, o artista transforma o célebre e infinitamente reproduzido quadro de Courbet em um brinquedo, o bilboquê. A conotação sexual dos elementos é tornada impotente pela mera escala do objeto. Três jogos ao todo — pesando cada um 400 kg e torneados a partir do tronco de uma única árvore — formam a instalação. Sua superfície tem o aveludado da derme. As cordas que conectam as hastes às bolas perfuradas apresentam-se emaranhadas, não deixando claro à primeira vista quem é o par de quem.

Escolher um bilboquê como origem é um ato jocoso em si. O brinquedo nasceu concomitantemente em várias culturas através do mundo, da Europa à Antártica, dos nativos da América do Norte às tribos do Japão, fazendo com que a determinação de sua origem seja impossível. Não se sabe se sua presença em círculos tão diversos se deve aos primórdios do comércio marítimo ou à necessidade comum de treinar a habilidade das crianças em sociedades dependentes da caça. Os Bilboquês de Villani, como sua obra, possuem esta dualidade: eles se referem à uma pintura, uma fonte, enquanto sugerem a impossibilidade de localizá-la. Eles demonstram que a busca da origem leva à multiplicação e ao entrelaçamento das narrativas.

PRESENÇAS / AUSÊNCIAS | Michael Asbury

Percorrendo a prolixa produção de Villani, começamos a compreender o sentido de certas referências, e como o artista as tissa na materialização de sua obra. Notamos também que o discurso não depende tanto da repetição destas referências, mas da distinção operada em sua articulação.

Um indício importante na compreensão desta complexidade é a série de lençóis Varal de Emoções, que o artista produz num período de seis anos à partir de 1998-99. Reunindo aproximadamente sessenta obras individuadas numa única instalação, o Varal de Villani é uma matriz que entrelaça o singular com o global, as instâncias da história da arte com a vida pessoal. O lençóis são estendidos, não repassados, ainda úmidos, suficientemente fluidos para fomentar diversas interpretações e especulações.

Estabelecido na França há mais de vinte anos, Villani procurava há algum tempo uma maneira de colaborar com artesãos envolvidos com o que poderia se chamar de economia paralela : trabalhadores, normalmente de países em desenvolvimento, que complementam suas rendas graças aos seus dons criativos. O acaso o fez tomar conhecimento de um grupo de mulheres trabalhando numa oficina de bordados no Hospital psiquiátrico de Marilia, sua cidade natal.

Villani adquire então nos mercados de pulgas de Paris lençóis do século 19, em linho dito « camponês ». Realizados em teares rudimentares, eles são compostos de duas faixas estreitas justapostas, em um tecido rude, de fibras de linho e cânhamo. O artista os recobre de desenhos, enviando-os em seguida para as bordadeiras de Marilia.

A sua matéria-prima é o tecido que recobre nossos momentos mais íntimos, nossos sonhos e pesadelos, sobre os quais descarregamos nossos medos e mágoas, onde atravessamos o paroxismo da dor e do prazer, da vida e da morte.

As pacientes que bordavam os desenhos de Villani sofreram traumas diversos, como a perda de filhos ou parceiros. A obra incorpora assim directamente um processo de luto anónimo – por acaso ou intencionalmente, os lençóis bordados remetem amiúde a temas ligados a presença e a ausência – evocando incidentemente os processos específicos que caracterizam os bordados deu Bispo do Rosário e de José Leonilson.

Varal de emoções combina vários territórios afetivos: artesanato e arte, histórico e contemporâneo, mas também os dois lares do artista, o original e o adotado. Num processo de vaivém que reproduz o movimento da agulha do bordado, os lençóis descrevem seu percurso, do Brasil à França, enquanto que seu deslocamento – de Paris para Marília – fecha o círculo.

O percurso dos lençóis de Villani lembra também os hábitos da burguesia européia que mandava seus linhos finos para serem lavados e quarados sob o sol tropical. Embora preservando o extravagante aspecto transnacional, há aqui uma diferença essencial: o sol escaldante do Brasil não pode obliterar o espectro de todos os que com ele se cobriram, e esses lençóis, outrora brancos, voltam coloridos, enriquecidos de seus sonhos.

 

[1] O próprio processo de bordado marca tanto a frente como o verso, conferindo um duplo carácter – positivo/negativo – ao trabalho. Esta duplicação do “si-mesmo” aparece em alguns dos lençóis, mas em nenhum de forma tão clara quanto em Lea e Maura (as Gêmeas), referência explícita a uma obra célebre do pintor brasileiro Guignard, na qual duas jovens são representadas vestindo vestidos idênticos. No entanto, na representação de Villani, as gêmeas estão ausentes, sendo apenas retratados os seus vestidos vazios. São, portanto, mais do que um “si” dividido, são divisão e perda.

COLAGENS (Emanações) | Michael Asbury

Antigos manuscritos, na maioria atos notariais, constituem o suporte desta série. Os documentos datam de meados do século 18 ao começo do século 20. Mas o que interessa Villani não é o conteúdo preciso das páginas, mas suas qualidades inerentes: o ruído de fundo propiciado pela escritura à mão, a natureza absorvente do papel chiffon. Uma relação se estabelece inevitavelmente entre o ultimo e o primeiro planos, que vai bem além de simples texturas e cores.

A noção de hiato cronológico, a simultaneamente dos vai-e-vens em suas referências aqui se materializam — e se acompanham da disjunção do nosso olhar, obrigado a reavaliar o foco, segundo o elemento da composição que se observa.

A coleta de objetos e artefatos cara ao artista ladeia a sua não menor obsessão em colecionar formas. Com uma tesoura, Villani cria contornos líricos que dissimulam estruturas espaciais sofisticadas. Os recortes são embebidos em tinta à óleo — ao ponto de se transformarem em formas pictóricas, perdendo completamente seu aspecto de colagem — e em seguida apostos aos manuscritos.

A tinta reveste aqui função primordial, e se torna elemento de materialização. Pivô da dualidade das temporalidades, ela é o ingrediente ativo no efeito de multiplicação que as obras causam no observador. 

O desafio desta série reside na união de materiais incongruentes: papel e tinta à óleo. A qualidade absorvente do suporte permite que o óleo escape da tinta; uma dissociação da camada pictórica que por sua vez dá inicio à um processo de transformação – de efusão, contaminação, transubstanciação – do papel.

Nesta divertida subversão do entre-dois tão caro à Villani, enquanto um material ganha as características do outro, um novo componente tributário aos dois surge na composição: as emanações de óleo.

As obras falam desta área de contaminação: de como o suporte inicial e os recortes com limites acerados e cores vivas são enriquecidos pelo fluxo espontâneo induzido pela sua união. E na medida em que a aura em torno dos recortes avança, nos dias e semanas seguindo o fim da intervenção direta do artista, enquanto as silhuetas diáfanas se alastram além da área que lhes foi conferida pela tesoura, uma nova temporalidade – o futuro – é englobada, inadvertidamente elucidando a razão do uso exclusivo de papel chiffon e tinta à óleo.

Esta é a visão poética de Villani: estabelecer uma colaboração com um meio que foge ao seu controle absoluto.

COLAGENS (Fragmentos) | Michael Asbury

Esta série apresenta certa semelhança com outras obras de Villani. Notamos uma repetição de formas que tem a mesma qualidade sequencial das pinturas. Às vezes, essas colagens desempenham um papel de ancoragem para as suas Arquiteturas pintadas. Em outros casos, a presença de uma gelha na qual o artista, pela aposição de formas, interrompe o motivo e gera relações dinâmicas, remete a experiências anteriores, como as pinturas em preto e branco dos anos 1980. Simultaneamente lembrança quanto anunciadoras de outras séries, estas obras ocupam um lugar único na obra do artista, devido ao seu médium, sua (i) materialidade.

As colagens são construídas a partir de “fragmentos” de um único material, o papel, ordenados para produzir variações na transparência. O aspecto formal dessas obras monocromáticas vem da sobreposição dos cortes, seja na junção dos planos colados, seja pelo acúmulo voluntário de camadas. Assim, eles são projetados para se expressarem melhor em transparência, contra a luz, com a luz filtrando pelo filme de papel, revelando a imagem.

Inversamente, a reprodução fotográfica dessas obras assemelha-se ao seu negativo, pois o artista as sobrepõe a um fundo escuro para evidenciar sua estrutura. Os segmentos mais translúcidos, portanto, aparecem mais escuros nas fotografias. Este curioso fato fala por si. Esta série surge tanto como uma reflexão, um gabarito, uma anunciação de formas futuras na produção de Villani, quanto uma reflexão crítica e poética sobre o patrimônio histórico da qual provém.

A justaposição da dimensão imponente com o material delicado que caracteriza esta série, remete à noção de geometria sensível desenvolvida pelo crítico Roberto Pontual para definir a sensibilidade latino-americana a partir da herança do construtivismo do século XX. No entanto, ela evita qualquer eco do heroísmo associado ao “propósito construtivista”.

Os Fragmentos de Villani são portanto construções frágeis, baseadas em uma sólida convicção.

COLAGENS (Fotografias) | Michael Asbury

O que constatamos em primeiro lugar nestas fotografias das quais Villani se apropria é a coerência da linhagem da sua verve criativa. Se a memória é uma de suas matérias primas, é natural que incorpore fotografias em suas séries.

Apesar do tempo passado, talvez também da deslocação geográfica, estas fotografias parecem estranhamente intimas.

De uma maneira geral, as afinidades culturais não derivam necessariamente de origens comuns; além do que, no trabalho de Villani, as origens parecem semble esquivas, mesmo quando ele as evoca. Desconectadas de suas descendência, das pessoas cujos antepassados representam, estas fotografias são memórias apagadas. Recuperando as imagens, Villani as transforma em memórias coletivas, entrelaçando o singular com o plural, o subjetivo com o comum à muitos.

Suas intervenções reforçam o caráter apagado, mas também – sobretudo — as transformam em obras de arte : em eventos singulares.

Através de recortes embebidos em tinta à óleo, ele cora rostos esmaecidos pelo tempo, faz surgir aqui uma condecoração à um militar gaboso, acolá companheiros de jogos para uma criança solitária, envolve os recém casados em estrelas ou nuvens ameaçadoras. Sobre o austero retrato de família, numa árvore genealógica potencial, aparecem os descendentes futuros mesclados aos esprits frappeurs do passado.

Este procedimento reveste significado à partir do cruzamento de referências marcado pelo deslocamento; num desdobramento desta série, Villani adota a estratégia de jogos de escala para questionar a distância cronológica que nos separa dos personagens. A transposição dos pequenos originais em reproduções de grandes dimensões, confere às obras um peso fisico que vira – aqui como nos Bilboquets – um componente importante do trabalho: como se as patas dos monumentais porta-retratos suportassem com dificuldade o peso histórico que carregam.

Algumas das imagens foram reproduzidas seguidas vezes; apresentadas lado à lado elas ganham uma qualidade cinética, como se fossem sequências de um filme. É significante notar que, sabendo que sua presença é tão fugaz quanto a de seus sujeitos, Villani inclui-se entre eles, mistura seus retratos aos dos que já se foram, na certeza de um futuro certamente nivelador.

O paradoxo da proximidade e da distância reaparece então, nos propulsando em um túnel  temporal no qual a poética do deslocamento — de maneira similar e não menos onírica à que Lewis Caroll utiliza com Alice — possibilita a descoberta de si pelo encontro fortuito com o outro.