PRESSUPOSTOS POÉTICOS [1/2] | Fernando Cocchiarale

A confluência efetiva dos universos culturais pelos quais a subjetividade de Julio Villani navega (São Paulo — Brasil — Paris — França — Europa) é, desde sempre, vital para a dinâmica de seu trabalho. Tal confluência, no entanto, ainda que procedente, não determina nem tampouco é capaz de esclarecer seu processo criativo, que não é de modo algum a simples expressão de sua vida pessoal. A convergência evidente entre vida e obra no caso de Villani (bem como no da maioria dos artistas), só se efetiva, de fato, a partir da construção poética, aqui entendida num sentido semelhante ao conceituado por Umberto Eco (na “Obra Aberta”): “como projeto de formação ou estruturação da obra”.[1]  Trata-se, portanto, de cruzar as fronteiras que separam e, ao mesmo tempo, comunicam a historicidade de um contexto artístico determinado e sua reverberação poética no âmbito pessoal.

Nos trabalhos de Julio Villani a correlação entre contexto e poética é sempre consumada visualmente — mesmo seus textos bordados (“p(l)ano linha+ponto”, denominação alusiva a um dos livros mais conhecidos de Wassily Kandinsky, “O ponto e a linha diante do plano”) são produzidos (e usualmente vistos) como desenhos, já que foram concebidos para despertar a potência gráfica da palavra escrita. Correlação semelhante, assumida como uma de suas influências pelo próprio artista, é observável nos trabalhos de Arthur Bispo do Rosário, cujos bordados são apreensíveis primeiramente como experiência visual para, num momento derivado, serem também lidos, como escrita verbal, pelo observador.

A obra de Villani opõe-se, portanto, visualmente, ao universo semântico-verbal-narrativo que move a produção de parte considerável dos artistas contemporâneos, sobretudo a daqueles que explicitamente engajados numa arte declaradamente política acreditam na equivalência entre visualidade e discurso. Aproximados pela já desgastada noção de “linguagem”, estes modos diversos de comunicação poderiam ser “traduzidos” reciprocamente, sem perdas significativas.

Da concepção à produção de seus trabalhos, Julio Villani trafega na contra-mão dessa equivalência. Mas tal posição do artista não significa um apreço retrógrado pelo “formalismo”, conceito que a desconstrução do modernismo promovida pelo pós-modernismo e, de outra maneira, mais recentemente, pelo pensamento pós-colonial, tornou-se um dos adjetivos de significação mais depreciativa no sistema de arte atual, acatado pelas últimas gerações de artistas, curadores e intelectuais contemporâneos.

Não se trata aqui de negar o uso da palavra nas artes visuais, nem tampouco afirmar a impermeabilidade absoluta entre significação visual e escrita. Existem, é claro, zonas permeáveis entre estes dois tipos de discurso. Mas a mais favorável delas (cuja ambiguidade é produzida como valor cultural positivo) só pode ser produzida por meio da invenção e construção poéticas. Julio Villani sabe muito bem navegar e explorar essa zona, prática que se revela tanto nos títulos de suas séries e no de trabalhos específicos, quanto na carga semântica própria das imagens, das citações cromático-formais e dos objetos de que se “apropria”.

 
[1] Poética designa, desse ponto de vista, um “… programa operacional que o artista se propõe de cada vez, o projeto de obra a realizar tal como é entendido, explícita ou implicitamente pelo artista […] uma pesquisa sobre as poéticas […] baseia-se seja nas declarações expressas dos artistas, […] seja na análise das estruturas da obra”. (Eco, Umberto. Obra aberta. Introdução à segunda edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973. pp. 24 e 25)

PRESSUPOSTOS POÉTICOS [2/2] | Fernando Cocchiarale

A contribuição poética individual de um artista tornou-se indispensável ao modus operandi da arte europeia desde a Renascença, e sua assimilação repertorial, seja por comunidades específicas, seja por grupos sociais quantitativamente e/ou qualitativamente abrangentes, tornou-se ainda mais evidente a partir da passagem entre décadas de 1950 e 1960.

No que se refere à tal assimilação, a modernidade distinguiu-se pela busca de uma plástica pura, oposta à representação naturalista que movera, com variações, a produção artística europeia desde a Renascença. Tratava-se então de propor uma arte pura, limpa de referências semânticas alusivas a elementos não estruturais das obras, então pensadas como uma linguagem visual de formas e cores, pautada na consciência modernista de respeito ao plano pictórico.

É importante observar que a modernidade nem sempre navegou nas águas cristalinas da pureza. O interesse inicial da arte moderna pelas culturas tradicionais, pelo inconsciente (surrealismo) configuram um campo eclético de repertórios e referências. Tal campo tem por único traço comum a busca pelo cerne (ou essência) de toda a produção artística, fundamento necessário para a renovação exigida pela sociedade burguesa e seus aparatos tecnológicos reais (a engenharia do ferro, a linha de montagem fordista) e imaginários (Frankenstein, o cinema e o construtivismo russo, por exemplo).

São os resultados poéticos desse debate que Villani atualiza incessantemente. Existe uma correlação entre suas escolhas e estes diversos repertórios da modernidade. Mas ela não pode mais ser percebida e valorada do ponto de vista da ordem e da pureza em que estes repertórios originalmente floresceram.

Passados 60 anos da emergência da arte contemporânea, cujos primeiros exemplos podem ser observados no grupo japonês Gutai, da primeira metade da década de 1950, nas combine paintings de Robert Rauschemberg, na Pop anglo-americana, no nouveau réalisme francês, ou na radicalidade do Fluxus, tornou-se patente que no lugar dos ismos modernistas floresceram referências transculturais (portanto impuras ou híbridas, perfeitamente de acordo com o método de produzir por meio da edição de quaisquer meios e elementos) que dinamizaram e ainda movimentam a arte e a cultura contemporâneas.

A má vontade das duas ou três últimas gerações de curadores, artistas e críticos como o modernismo indica um desejo de oposição ao antecedente histórico imediato das novas possibilidades conquistadas pela produção de nosso tempo. Mas, de acordo com crítica contundente de Hal Foster: “O pós-modernismo conservador (…) é definido sobretudo em termos de estilo, depende do modernismo que, reduzido a sua pior imagem formalista, é contraponto a um retorno à narrativa, ao ornamento e à figura. Essa posição é em geral de reação, mas não só quanto ao estilo — já que também proclama o retorno à história (a tradição humanista) e o retorno do sujeito (o artista/arquiteto como auteur) […] Na arte e na arquitetura neoconservadora, o pós-modernismo está marcado por um historicismo eclético, no qual antigos e novos modos e estilos (bens usados, por assim dizer) são remanejados e reciclados”. [1]

Com Foster vemos que o núcleo poético da obra de Villani está na contramão daquele de parte considerável dos artistas atuais que evitam e até mesmo rejeitam valores modernistas em nome da citação estrita e da edição de repertórios visuais das chamadas culturas tradicionais ou da arte europeia pré-moderna.

A síntese transcultural pode ser o elo que conecta a experiência pessoal e o processo de construção poética de Julio Villani. Mas o artista não só assimila fortemente as referências modernistas (nem por isso formalistas), como também assume-as para reconstruí-las e atualizá-las, superpondo (literalmente) formas cromáticas e grafismos sobre imagens apropriadas e garimpadas ou, simplesmente, criando a partir da reestruturação de objetos cotidianos.

A hibridização de repertórios formais e icônicos modernistas (perceptível até mesmo em seu interesse por sistemas visuais de outras culturas) longe de afastá-lo dos métodos e procedimentos comprometidos com condições sócio-históricas da atualidade, inscrevem a obra de Villani num registro incomum e original nas poéticas contemporâneas.

 

[1] Foster, Hal. Polêmica (Pós-)Moderna, Recodificação. Arte, Espetáculo, Política Cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996. P.167