MÁQUINAS | Philippe Dagen

As máquinas estão presentes na arte há mais de um século, a vapor, a carvão, a pistão, a gás, elétricas, eletrônicas, cibernéticas, informáticas, digitais – certamente esqueço alguma. Quase não existe uma vanguarda que não tenha sido de alguma forma marcada por sua irrupção e progresso, desde a primeira locomotiva cruzando uma paisagem de Turner até … os exemplos são infinitos.

Concebidas pelo engenheiro do tempo perdido Marcel Duchamp, as máquinas celibatárias nada produzem, como sugere o adjetivo, o que não quer dizer que sejam inúteis. Muito pelo contrário: são máquinas inimigas das máquinas. Freqüentemente, foi observado que o surgimento de uma única máquina celibatária perturba as máquinas ativas, que ou se quebram ou começam a rodar loucamente, se tornando elas mesmas celibatárias por obra de um estranho contágio.

Nesse registro, o engenheiro Villani oferece artigos cujo absurdo poético só pode nos deixar perplexos. Um deles é uma máquina móvel para se ficar parado. Composto por um tapete rolante – com seus cilindros de acionamento e seu motor – e uma casa de madeira pintada de vermelho e amarelo, ela tem a peculiaridade de que o tapete rola à toa sob a casa, a qual fica imóvel pela simples ação de um barbante. 

Dentre as hipóteses interpretativas que podem ser sugeridas, reteremos três. A mais simples é obviamente a de um insulto ao motor, cujos esforços constantes e design técnico impecável são paralisados ​​por uma cordinha. Veríamos aí sem dificuldade alguma vingança do rudimentar sobre o complexo. Outros exemplos do mesmo embate seriam os danos causados ​​por um galho entre os raios de uma roda, por um pouco de areia em um carburador ou de água em um circuito elétrico. Esses incidentes deveriam lembrar a todos a terrível fragilidade das máquinas indestrutíveis. 

Uma segunda reflexão vem a mente, não menos óbvia: a arquitetura, que Villani prefere migrante, mostra-se aqui, ao contrário, in-transportável, contrariando o dispositivo que deveria faze-la avançar incansavelmente sobre o tapete de borracha preta. Pode ser uma forma de sugerir que a casa é igual em todos os lugares e que a mudança é apenas uma aparência. Para um artista que vive dos dois lados do Atlântico, o símbolo seria bastante eloquente. 

A terceira iria na mesma direção: que o movimento não seja perceptível embora sua realidade não possa ser negada, como o demonstra a vida cotidiana dos homens. Eles sabem que seu planeta está girando e mesmo assim têm a impressão de que suas casas estão imóveis, retidas por barbantes invisíveis, não obstante a rotação do globo terrestre sobre seu eixo.

Outra máquina, obviamente celibatária e duchampiana, é uma que anda para ficar parada – de novo a dialética da mobilidade pega pelo avesso. Consiste em uma mesa e um banquinho. A mesa suporta uma roda traseira, uma pedaleira e um quadro de bicicleta serrado. No banquinho, Villani prendeu uma caixa de madeira que um dia conteve garrafas de vinho, e dentro, uma segunda roda, menor. Nas duas pontas do eixo, do lado de fora da caixa, são amarrados dois cordões, sendo que a outra ponta segura dois sapatos, masculinos, de couro conhaque, um tanto chique. O acionamento dos pedais aciona a corrente e a roda grande, cuja rotação é transmitida por uma correia à outra roda, rotação que faz os calçados andarem – melhor dizendo, faz com que marquem o passo, já que nem o comprimento da corda nem o dispositivo geral permitem que avancem, nem mesmo de um centímetro. Estão condenados a andar sem avançar, até o esgotamento de quem pedala na outra ponta da corrente. Esta construção é erudita e idiota, inscrita na continuidade reivindicada da roda de bicicleta de Duchamp girando em cima do banquinho, um legendário readymade ao qual Villani teve a audácia de se atacar.

O jogo do cancelamento atinge aqui o seu auge: um movimento real determina um movimento não menos real, mas imóvel – o que se chama de não sair do lugar, exercício bem conhecido dos ciclistas de pista que, involuntariamente, praticam esta forma de dialética negativa. No caso de Villani, isso certamente não é involuntário. Para adicionar um pouco de maluquice, ele pôs uma lata de biscoitos em cima da roda que faz dançar os sapatos, como um tambor. Tambor este que  serve para absolutamente nada. Ele é, segundo a expressão consagrada, de uma inutilidade esplêndida. Tanto mais esplêndida que à ideia de sapatos que não avançam podem ser associadas diversas lendas e fábulas, histórias de passeios ao léu ou de Professor Girassol, de estátuas e fantasmas, de ilusões e desilusões. Você acha que está se movendo? Você está simplesmente se dando a ilusão reconfortante de fazê-lo.

A terceira máquina é de um tipo levemente diferente: duas caixas – grandes caixas envidraçadas destinadas aos anunciantes – equipadas com sistemas rotativos que fazem desfilar cartazes publicitários. Aqui, não são cartazes que desfilam, mas rolos nos quais Villani desenhou sua vida sob forma de pranchas anatômicas. As artérias e as veias representam as vias de circulação, os órgãos são as cidades e as ideias. É de uma grande simplicidade – de uma dessas evidências que nos faz perguntar por que nenhum artista havia pensado nisso antes, tão hábil e eficiente é o desvio deste material publicitário. (E quem pode reclamar que este finalmente sirva para outra coisa além da promoção de um filme de Hollywood, uma cerveja ou uma linha de roupas íntimas para adolescentes?)

É simples e é inquietante. Por causa da confusão entre anatomia e geografia. Porque Villani faz aparecer aqui, quase naturalmente, o princípio do homem cósmico e os jogos de correspondência simbólica que tiveram tamanha importância no passado e que acreditamos – homens modernos e racionais que somos – termos abandonado há tempos; enquanto que esta forma de pensar, dita arcaica, não desapareceu, mas continua a agir de forma mais ou menos oculta. Também por causa do desfile continuo das imagens: a mudança nunca para, mas essa mudança se revela ser o reaparecimento do idêntico, um idêntico que seria o eu, um eu assim mapeado, circunscrito e definido, apesar da presença de variação, induzida pelo movimento. Aqui encontramos a estranha – talvez melancólica – dialética da imobilidade e do movimento que está no cerne da obra de Villani e representa um dos seus maiores interesses.

No que diz respeito à história da arte, esta dupla tela autobiográfica em forma de painéis publicitários apresenta uma última particularidade: reúne o readymade – as caixas de painéis giratórios – e o desenho – as pranchas anatômicas; nasce assim um auto-retrato, este gênero antigo e provavelmente imortal reaparecendo aqui de forma um tanto imprevista. A menos que o pensamento fique tão surpreso com esse surgimento que venha a reexaminar a história dos readymades e se proponha, desafiando qualquer tradição crítica e filosófica, a tomar o readymade por um estilo de autorretrato, o mais rápido, o mais brutal e o mais obviamente “assinado”. Se nos atemos a Duchamp, nada poderia ser menos ilegítimo: a decisão de colocar uma roda de bicicleta em um banquinho ou suspender um cabideiro só se justifica como um puro decreto da vontade do artista que muda a ordem do mundo de acordo com sua fantasia. Um readymade seria um relicário autobiográfico, feito por todos aqueles que, com objetos (de arte ou não) compõem em casa certos arranjos que, por serem perturbações da norma, trazem sua marca.

As máquinas de Villani são autorretratos sob forma de readymades, amparados e desviados.

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Outras máquinas e esculturas | ANARQUIVOS

DOMICÍLIO FIXO | Objetos, acrílica sobre tela, motor, barbante, prego | 100 x 126 x 65 cm | 2005

DOMICÍLIO FIXO | Objetos, acrílica sobre tela, motor, barbante, prego | 100 x 126 x 65 cm | 2005

INSTABILIS (ROTAÇÃO) | Objetos, fio de algodão, madeira, arame, papel | 65 x 85 x 74 cm | 2001

INSTABILIS (ITA) | Objetos, fio de algodão, arame | 18,5 x 5 x 4 cm | 2013

MÁQUINA DE MISTURAR MUNDOS | Madeira, corda em cânhamo, placas esmaltadas com letras, correntes e motor | 170 x 360 x 60 cm | 2002

JOÃO BOBO | Alumínio, laca, acrílica, madeira | 19,5 x 20,5 x 14,5 cm | 2019

JOÃO BOBO | Alumínio, laca, acrílica, madeira | 19,5 x 20,5 x 14,5 cm | 2019

PASSEADOR (EM TEORIA) | Madeira, corda em cânhamo, motor, objetos | 176 x 60 x 212 cm | 2002

TEOREMA DA DESMEDIDA | Objetos, fio de algodão | 60,5 x 144 x 21 cm | 2013

INSTABILIS (QUADRADO MOLE) | Tubos de latão, fio encerado | Dimensões (e formas) variáveis | Arresta 33 cm | 2016

AN OBJECT, ITS CENTER | Abadia do Thoronet | CMN / Palais de Tokyo hors les murs | 2019

DE UM CORAÇÃO, OUTRO | Acrílica sobre papel, inserido em dispositivo de publicidade urbana | Capela da Visitação, Thonon-les-Bains, 2011

PINTURA MÓVEL EM QUADRO FIXO | Gouache e grafite sobre papel, madeira, objetos | 2003

MOTOROLA | Madeira, objetos, acrílica | 2005

TIMBER HOUSE | Objetos, fio de algodão, madeira, folha de alumínio | 32,5 x 24 x 15,5 cm | 2014

PÁSSARO NA GAIOLA | Objetos, madeira, acrílica, barbante | 39 x 48 x 28 cm | 2010

PÁSSARO NA GAIOLA | | Objetos, madeira, acrílica, barbante | No centro, "Mulher com pássaro", de Ossip Zadkine, 1930 | Musée Zadkine, Paris, 2010

BRINQUEDO ARQUEOLÓGICO | Bronze | 17 x 8 x 6,5 cm | 1989

MÁQUINA DE BATER PANELA | Madeira, metal, arame, objetos | 30 x 29 x 15 cm | 2019

FLOR | Objetos, madeira, arame, folha de alumínio | 43 x 13 x 13,8 cm | 2003

MÁQUINAS | Philippe Dagen

As máquinas estão presentes na arte há mais de um século, a vapor, a carvão, a pistão, a gás, elétricas, eletrônicas, cibernéticas, informáticas, digitais – certamente esqueço alguma. Quase não existe uma vanguarda que não tenha sido de alguma forma marcada por sua irrupção e progresso, desde a primeira locomotiva cruzando uma paisagem de Turner até … os exemplos são infinitos.

Concebidas pelo engenheiro do tempo perdido Marcel Duchamp, as máquinas celibatárias nada produzem, como sugere o adjetivo, o que não quer dizer que sejam inúteis. Muito pelo contrário: são máquinas inimigas das máquinas. Freqüentemente, foi observado que o surgimento de uma única máquina celibatária perturba as máquinas ativas, que ou se quebram ou começam a rodar loucamente, se tornando elas mesmas celibatárias por obra de um estranho contágio.

Nesse registro, o engenheiro Villani oferece artigos cujo absurdo poético só pode nos deixar perplexos. Um deles é uma máquina móvel para se ficar parado. Composto por um tapete rolante – com seus cilindros de acionamento e seu motor – e uma casa de madeira pintada de vermelho e amarelo, ela tem a peculiaridade de que o tapete rola à toa sob a casa, a qual fica imóvel pela simples ação de um barbante. 

Dentre as hipóteses interpretativas que podem ser sugeridas, reteremos três. A mais simples é obviamente a de um insulto ao motor, cujos esforços constantes e design técnico impecável são paralisados ​​por uma cordinha. Veríamos aí sem dificuldade alguma vingança do rudimentar sobre o complexo. Outros exemplos do mesmo embate seriam os danos causados ​​por um galho entre os raios de uma roda, por um pouco de areia em um carburador ou de água em um circuito elétrico. Esses incidentes deveriam lembrar a todos a terrível fragilidade das máquinas indestrutíveis. 

Uma segunda reflexão vem a mente, não menos óbvia: a arquitetura, que Villani prefere migrante, mostra-se aqui, ao contrário, in-transportável, contrariando o dispositivo que deveria faze-la avançar incansavelmente sobre o tapete de borracha preta. Pode ser uma forma de sugerir que a casa é igual em todos os lugares e que a mudança é apenas uma aparência. Para um artista que vive dos dois lados do Atlântico, o símbolo seria bastante eloquente. 

A terceira iria na mesma direção: que o movimento não seja perceptível embora sua realidade não possa ser negada, como o demonstra a vida cotidiana dos homens. Eles sabem que seu planeta está girando e mesmo assim têm a impressão de que suas casas estão imóveis, retidas por barbantes invisíveis, não obstante a rotação do globo terrestre sobre seu eixo.

Outra máquina, obviamente celibatária e duchampiana, é uma que anda para ficar parada – de novo a dialética da mobilidade pega pelo avesso. Consiste em uma mesa e um banquinho. A mesa suporta uma roda traseira, uma pedaleira e um quadro de bicicleta serrado. No banquinho, Villani prendeu uma caixa de madeira que um dia conteve garrafas de vinho, e dentro, uma segunda roda, menor. Nas duas pontas do eixo, do lado de fora da caixa, são amarrados dois cordões, sendo que a outra ponta segura dois sapatos, masculinos, de couro conhaque, um tanto chique. O acionamento dos pedais aciona a corrente e a roda grande, cuja rotação é transmitida por uma correia à outra roda, rotação que faz os calçados andarem – melhor dizendo, faz com que marquem o passo, já que nem o comprimento da corda nem o dispositivo geral permitem que avancem, nem mesmo de um centímetro. Estão condenados a andar sem avançar, até o esgotamento de quem pedala na outra ponta da corrente. Esta construção é erudita e idiota, inscrita na continuidade reivindicada da roda de bicicleta de Duchamp girando em cima do banquinho, um legendário readymade ao qual Villani teve a audácia de se atacar.

O jogo do cancelamento atinge aqui o seu auge: um movimento real determina um movimento não menos real, mas imóvel – o que se chama de não sair do lugar, exercício bem conhecido dos ciclistas de pista que, involuntariamente, praticam esta forma de dialética negativa. No caso de Villani, isso certamente não é involuntário. Para adicionar um pouco de maluquice, ele pôs uma lata de biscoitos em cima da roda que faz dançar os sapatos, como um tambor. Tambor este que  serve para absolutamente nada. Ele é, segundo a expressão consagrada, de uma inutilidade esplêndida. Tanto mais esplêndida que à ideia de sapatos que não avançam podem ser associadas diversas lendas e fábulas, histórias de passeios ao léu ou de Professor Girassol, de estátuas e fantasmas, de ilusões e desilusões. Você acha que está se movendo? Você está simplesmente se dando a ilusão reconfortante de fazê-lo.

A terceira máquina é de um tipo levemente diferente: duas caixas – grandes caixas envidraçadas destinadas aos anunciantes – equipadas com sistemas rotativos que fazem desfilar cartazes publicitários. Aqui, não são cartazes que desfilam, mas rolos nos quais Villani desenhou sua vida sob forma de pranchas anatômicas. As artérias e as veias representam as vias de circulação, os órgãos são as cidades e as ideias. É de uma grande simplicidade – de uma dessas evidências que nos faz perguntar por que nenhum artista havia pensado nisso antes, tão hábil e eficiente é o desvio deste material publicitário. (E quem pode reclamar que este finalmente sirva para outra coisa além da promoção de um filme de Hollywood, uma cerveja ou uma linha de roupas íntimas para adolescentes?)

É simples e é inquietante. Por causa da confusão entre anatomia e geografia. Porque Villani faz aparecer aqui, quase naturalmente, o princípio do homem cósmico e os jogos de correspondência simbólica que tiveram tamanha importância no passado e que acreditamos – homens modernos e racionais que somos – termos abandonado há tempos; enquanto que esta forma de pensar, dita arcaica, não desapareceu, mas continua a agir de forma mais ou menos oculta. Também por causa do desfile continuo das imagens: a mudança nunca para, mas essa mudança se revela ser o reaparecimento do idêntico, um idêntico que seria o eu, um eu assim mapeado, circunscrito e definido, apesar da presença de variação, induzida pelo movimento. Aqui encontramos a estranha – talvez melancólica – dialética da imobilidade e do movimento que está no cerne da obra de Villani e representa um dos seus maiores interesses.

No que diz respeito à história da arte, esta dupla tela autobiográfica em forma de painéis publicitários apresenta uma última particularidade: reúne o readymade – as caixas de painéis giratórios – e o desenho – as pranchas anatômicas; nasce assim um auto-retrato, este gênero antigo e provavelmente imortal reaparecendo aqui de forma um tanto imprevista. A menos que o pensamento fique tão surpreso com esse surgimento que venha a reexaminar a história dos readymades e se proponha, desafiando qualquer tradição crítica e filosófica, a tomar o readymade por um estilo de autorretrato, o mais rápido, o mais brutal e o mais obviamente “assinado”. Se nos atemos a Duchamp, nada poderia ser menos ilegítimo: a decisão de colocar uma roda de bicicleta em um banquinho ou suspender um cabideiro só se justifica como um puro decreto da vontade do artista que muda a ordem do mundo de acordo com sua fantasia. Um readymade seria um relicário autobiográfico, feito por todos aqueles que, com objetos (de arte ou não) compõem em casa certos arranjos que, por serem perturbações da norma, trazem sua marca.

As máquinas de Villani são autorretratos sob forma de readymades, amparados e desviados.

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Outras máquinas e esculturas | ANARQUIVOS

DOMICÍLIO FIXO | Objetos, acrílica sobre tela, motor, barbante, prego | 100 x 126 x 65 cm | 2005

DOMICÍLIO FIXO | Objetos, acrílica sobre tela, motor, barbante, prego | 100 x 126 x 65 cm | 2005

DOMICÍLIO FIXO | Objetos, acrílica sobre tela, motor, barbante, prego | 100 x 126 x 65 cm | 2005

INSTABILIS (ROTAÇÃO) | Objetos, fio de algodão, madeira, arame, papel | 65 x 85 x 74 cm | 2001

INSTABILIS (ITA) | Objetos, fio de algodão, arame | 18,5 x 5 x 4 cm | 2013

MÁQUINA DE MISTURAR MUNDOS | Madeira, corda em cânhamo, placas esmaltadas com letras, correntes e motor | 170 x 360 x 60 cm | 2002

JOÃO BOBO | Alumínio, laca, acrílica, madeira | 19,5 x 20,5 x 14,5 cm | 2019

JOÃO BOBO | Alumínio, laca, acrílica, madeira | 19,5 x 20,5 x 14,5 cm | 2019

PASSEADOR (EM TEORIA) | Madeira, corda em cânhamo, motor, objetos | 176 x 60 x 212 cm | 2002

TEOREMA DA DESMEDIDA | Objetos, fio de algodão | 60,5 x 144 x 21 cm | 2013

INSTABILIS (QUADRADO MOLE) | Tubos de latão, fio encerado | Dimensões (e formas) variáveis | Arresta 33 cm | 2016

AN OBJECT, ITS CENTER | Abadia do Thoronet | CMN / Palais de Tokyo hors les murs | 2019

DE UM CORAÇÃO, OUTRO | Acrílica sobre papel, inserido em dispositivo de publicidade urbana | Capela da Visitação, Thonon-les-Bains, 2011

PINTURA MÓVEL EM QUADRO FIXO | Gouache e grafite sobre papel, madeira, objetos | 2003

MOTOROLA | Madeira, objetos, acrílica | 2005

TIMBER HOUSE | Objetos, fio de algodão, madeira, folha de alumínio | 32,5 x 24 x 15,5 cm | 2014

PÁSSARO NA GAIOLA | Objetos, madeira, acrílica, barbante | 39 x 48 x 28 cm | 2010

PÁSSARO NA GAIOLA | | Objetos, madeira, acrílica, barbante | No centro, "Mulher com pássaro", de Ossip Zadkine, 1930 | Musée Zadkine, Paris, 2010

BRINQUEDO ARQUEOLÓGICO | Bronze | 17 x 8 x 6,5 cm | 1989

MÁQUINA DE BATER PANELA | Madeira, metal, arame, objetos | 30 x 29 x 15 cm | 2019

FLOR | Objetos, madeira, arame, folha de alumínio | 43 x 13 x 13,8 cm | 2003

MÁQUINAS | Philippe Dagen

As máquinas estão presentes na arte há mais de um século, a vapor, a carvão, a pistão, a gás, elétricas, eletrônicas, cibernéticas, informáticas, digitais – certamente esqueço alguma. Quase não existe uma vanguarda que não tenha sido de alguma forma marcada por sua irrupção e progresso, desde a primeira locomotiva cruzando uma paisagem de Turner até … os exemplos são infinitos.

Concebidas pelo engenheiro do tempo perdido Marcel Duchamp, as máquinas celibatárias nada produzem, como sugere o adjetivo, o que não quer dizer que sejam inúteis. Muito pelo contrário: são máquinas inimigas das máquinas. Freqüentemente, foi observado que o surgimento de uma única máquina celibatária perturba as máquinas ativas, que ou se quebram ou começam a rodar loucamente, se tornando elas mesmas celibatárias por obra de um estranho contágio.

Nesse registro, o engenheiro Villani oferece artigos cujo absurdo poético só pode nos deixar perplexos. Um deles é uma máquina móvel para se ficar parado. Composto por um tapete rolante – com seus cilindros de acionamento e seu motor – e uma casa de madeira pintada de vermelho e amarelo, ela tem a peculiaridade de que o tapete rola à toa sob a casa, a qual fica imóvel pela simples ação de um barbante. 

Dentre as hipóteses interpretativas que podem ser sugeridas, reteremos três. A mais simples é obviamente a de um insulto ao motor, cujos esforços constantes e design técnico impecável são paralisados ​​por uma cordinha. Veríamos aí sem dificuldade alguma vingança do rudimentar sobre o complexo. Outros exemplos do mesmo embate seriam os danos causados ​​por um galho entre os raios de uma roda, por um pouco de areia em um carburador ou de água em um circuito elétrico. Esses incidentes deveriam lembrar a todos a terrível fragilidade das máquinas indestrutíveis. 

Uma segunda reflexão vem a mente, não menos óbvia: a arquitetura, que Villani prefere migrante, mostra-se aqui, ao contrário, in-transportável, contrariando o dispositivo que deveria faze-la avançar incansavelmente sobre o tapete de borracha preta. Pode ser uma forma de sugerir que a casa é igual em todos os lugares e que a mudança é apenas uma aparência. Para um artista que vive dos dois lados do Atlântico, o símbolo seria bastante eloquente. 

A terceira iria na mesma direção: que o movimento não seja perceptível embora sua realidade não possa ser negada, como o demonstra a vida cotidiana dos homens. Eles sabem que seu planeta está girando e mesmo assim têm a impressão de que suas casas estão imóveis, retidas por barbantes invisíveis, não obstante a rotação do globo terrestre sobre seu eixo.

Outra máquina, obviamente celibatária e duchampiana, é uma que anda para ficar parada – de novo a dialética da mobilidade pega pelo avesso. Consiste em uma mesa e um banquinho. A mesa suporta uma roda traseira, uma pedaleira e um quadro de bicicleta serrado. No banquinho, Villani prendeu uma caixa de madeira que um dia conteve garrafas de vinho, e dentro, uma segunda roda, menor. Nas duas pontas do eixo, do lado de fora da caixa, são amarrados dois cordões, sendo que a outra ponta segura dois sapatos, masculinos, de couro conhaque, um tanto chique. O acionamento dos pedais aciona a corrente e a roda grande, cuja rotação é transmitida por uma correia à outra roda, rotação que faz os calçados andarem – melhor dizendo, faz com que marquem o passo, já que nem o comprimento da corda nem o dispositivo geral permitem que avancem, nem mesmo de um centímetro. Estão condenados a andar sem avançar, até o esgotamento de quem pedala na outra ponta da corrente. Esta construção é erudita e idiota, inscrita na continuidade reivindicada da roda de bicicleta de Duchamp girando em cima do banquinho, um legendário readymade ao qual Villani teve a audácia de se atacar.

O jogo do cancelamento atinge aqui o seu auge: um movimento real determina um movimento não menos real, mas imóvel – o que se chama de não sair do lugar, exercício bem conhecido dos ciclistas de pista que, involuntariamente, praticam esta forma de dialética negativa. No caso de Villani, isso certamente não é involuntário. Para adicionar um pouco de maluquice, ele pôs uma lata de biscoitos em cima da roda que faz dançar os sapatos, como um tambor. Tambor este que  serve para absolutamente nada. Ele é, segundo a expressão consagrada, de uma inutilidade esplêndida. Tanto mais esplêndida que à ideia de sapatos que não avançam podem ser associadas diversas lendas e fábulas, histórias de passeios ao léu ou de Professor Girassol, de estátuas e fantasmas, de ilusões e desilusões. Você acha que está se movendo? Você está simplesmente se dando a ilusão reconfortante de fazê-lo.

A terceira máquina é de um tipo levemente diferente: duas caixas – grandes caixas envidraçadas destinadas aos anunciantes – equipadas com sistemas rotativos que fazem desfilar cartazes publicitários. Aqui, não são cartazes que desfilam, mas rolos nos quais Villani desenhou sua vida sob forma de pranchas anatômicas. As artérias e as veias representam as vias de circulação, os órgãos são as cidades e as ideias. É de uma grande simplicidade – de uma dessas evidências que nos faz perguntar por que nenhum artista havia pensado nisso antes, tão hábil e eficiente é o desvio deste material publicitário. (E quem pode reclamar que este finalmente sirva para outra coisa além da promoção de um filme de Hollywood, uma cerveja ou uma linha de roupas íntimas para adolescentes?)

É simples e é inquietante. Por causa da confusão entre anatomia e geografia. Porque Villani faz aparecer aqui, quase naturalmente, o princípio do homem cósmico e os jogos de correspondência simbólica que tiveram tamanha importância no passado e que acreditamos – homens modernos e racionais que somos – termos abandonado há tempos; enquanto que esta forma de pensar, dita arcaica, não desapareceu, mas continua a agir de forma mais ou menos oculta. Também por causa do desfile continuo das imagens: a mudança nunca para, mas essa mudança se revela ser o reaparecimento do idêntico, um idêntico que seria o eu, um eu assim mapeado, circunscrito e definido, apesar da presença de variação, induzida pelo movimento. Aqui encontramos a estranha – talvez melancólica – dialética da imobilidade e do movimento que está no cerne da obra de Villani e representa um dos seus maiores interesses.

No que diz respeito à história da arte, esta dupla tela autobiográfica em forma de painéis publicitários apresenta uma última particularidade: reúne o readymade – as caixas de painéis giratórios – e o desenho – as pranchas anatômicas; nasce assim um auto-retrato, este gênero antigo e provavelmente imortal reaparecendo aqui de forma um tanto imprevista. A menos que o pensamento fique tão surpreso com esse surgimento que venha a reexaminar a história dos readymades e se proponha, desafiando qualquer tradição crítica e filosófica, a tomar o readymade por um estilo de autorretrato, o mais rápido, o mais brutal e o mais obviamente “assinado”. Se nos atemos a Duchamp, nada poderia ser menos ilegítimo: a decisão de colocar uma roda de bicicleta em um banquinho ou suspender um cabideiro só se justifica como um puro decreto da vontade do artista que muda a ordem do mundo de acordo com sua fantasia. Um readymade seria um relicário autobiográfico, feito por todos aqueles que, com objetos (de arte ou não) compõem em casa certos arranjos que, por serem perturbações da norma, trazem sua marca.

As máquinas de Villani são autorretratos sob forma de readymades, amparados e desviados.

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Outras máquinas e esculturas | ANARQUIVOS