
ORBITAIS | Paula Alzugaray
Uma rosa para a menina e uma espada para o ginete. Quando o jovem cavaleiro e a menina entraram no estúdio fotográfico, em algum momento da década de 1930, receberam do fotógrafo os acessórios que lhe garantiram duas identidades sociais bem definidas. Devidamente trajados e teatralizados, a menina com a rosa e o ginete armado com a espada viajaram o século 20 em álbuns e caixas de retratos, acompanhados de outras categorias de tipografias sociais, que incluem debutantes, formandos, noivos, aniversariantes, casais, familiares reunidos. Localizamos hoje essas identidades na atual série de pinturas sobre retratos de Julio Villani.
A invasão de tinta sobre esses quadros, outrora tão bem compostos, retira dos modelos os apoios e artifícios que foram-lhes emprestados pelo fotógrafo a fim de que pudessem suportar “sua passagem para a imobilidade” [1]. Orbitadas por um léxico de abstrações geométricas, as identidades fotográficas veem-se aqui dotadas de especial animosidade – ou até mesmo animalidade – e subtraídas do que Barthes chamou de “a camada mortífera da Pose” [2], referindo-se ao retrato oitocentista. No lugar da rosa, um cacho de esferas que pende em desequilíbrio. Ao invés da fita no cabelo, um par de orelhas de abano. Sobre o vestido, elementos gráficos que sugerem um par de asas. Outrora solitária, a menina agora está acompanhada. À sua volta, passeiam um trapezista, um anjo, um célibataire [3].
Essa estratégia de desestabilização da pose se repete em todo o banco de imagens sobre o qual Villani se debruçou. Estamos diante de fotografias providas de uma intenção cinética. Em grande parte dos casos, o artista trabalhou sobre três, cinco, dez reproduções de um mesmo retrato. Ao intervir diversas vezes sobre a mesma imagem matriz, encontrou uma forma de colocar sua pintura em movimento. A ilusão de movimento é aqui engendrada por um desequilíbrio do padrão repetitivo original. Apoiados, encaixados ou flutuantes no espaço gravitacional desses modelos estáticos, os elementos geométricos provocam a sua desestabilização. Ao “despertar” as figuras da perenidade de suas poses, devolvem-lhes a qualidade de acontecimento, “a verdade enfática do gesto” [4]. Contemplados lado a lado, os retratos pintados ganham, então, a dimensão de construções cinéticas. Funcionam como frames de um filme.
Com sua intervenção de corte, pintura e colagem sobre as fotografias, Villani dispara um processo de desconstrução da pose que afinal já estava em pleno andamento nos anos 30, quando o conceito do instantâneo fotográfico começa a ser aplicado ao retrato. Entre as imagens escolhidas, aparecem esses instantâneos da vida social e cotidiana francesa, cenas ao ar livre: um casal passeia num campo; um grupo de pessoas em uma calçada; crianças brincam em um banco de areia. A natural desorganização com que os personagens se distribuem nesses quadros denuncia que eles não posaram ao longo de um minuto inteiro para as câmeras, mas foram captados durante ou em uma breve pausa em suas atividades.
No momento em que o grupo confraternizava na calçada daquela rua francesa, fazia pouco mais de uma década que Picasso havia colocado para fora todo o seu impulso primitivista, em Les demoiselles d’Avignon. Mas aquelas pessoas provavelmente nem suspeitavam disso, de tão entretidas que estavam com a reforma da fachada de seu café. Não muito longe dali, desde o silêncio de sua pose, o ginete com a espada tampouco tinha ciência de que, naquele mesmo momento, em algum lugar da América, Alexander Calder construía seus primeiros móbiles e Marcel Duchamp desenhava seus Optical Disks (1935).
São as intervenções de Julio Villani que nos atentam para a proximidade e a correspondência entre esses acontecimentos. Evocando a arte cinética, a máscara cubista, os arames de Calder e os celibatários de Duchamp, ele coloca a menina e o ginete sobre a corda bamba.
[1] Barthes, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
[2] Op. cit
[3] Uma referência à obra La mariée mise à nu par ses célibataires même (1915-23), de Marcel Duchamp.

PORRADA COM LUVA DE PELICA | Paula Alzugaray
Incitado pela campanha difundida em redes sociais – Pano Preto na Janela pelo Fora Bolsonaro! –, Julio Villani manifestou seu luto pelos desmandos da política brasileira, mas não da janela de sua casa-ateliê em Paris, onde reside há 38 anos. O artista pendurou seus panos pretos entre as janelas da fachada da Embaixada do Brasil na capital francesa.
Em cada uma das sete faixas, uma mensagem de desagravo e indignação. A primeira reproduz o texto do mandatário nacional diante dos números crescentes de mortes no País, “e daí?”, contra um fundo de cruzes vermelhas. Em outra, uma arma atira contra as palavras dignidade, justiça, respeito, memória, integridade. Os atentados às etnias indígenas são denunciados numa faixa em que nomes de grupos ameaçados são emaranhados em labaredas ascendentes. A última, uma bandeira branca, afirma: Um Outro Brasil É Possível.
Julio Villani elabora uma pesquisa artística que integra elementos das tradições construtivista, neoconstrutiva e popular. Dada a sofisticação da fatura, a intervenção Pano Preto na Janela (2020) não poderá ser tachada de “vandalismo”, como se costuma dizer de muitas manifestações políticas e estéticas que têm a cidade como suporte ou palco. A obra entra para a história da arte de protesto.