JULIO VILLANI, CONECTAR O MUNDO | Philippe Piguet

Não se vive entre dois continentes, não se perambula entre dois países sem ter sua individualidade profundamente alterada por essa circunstância. Assim, Julio Villani se formou entre a América do Sul e a Europa, entre sua terra natal, o Brasil, e a França, que escolheu como país de adoção, entre São Paulo, onde cresceu, e Paris, onde forjou sua identidade de artista. Sua escolha deliberada por esse desdobramento e a forma construtiva que lhe imprimiu dão a sua vida e a sua obra uma dimensão dinâmica, plenamente assumida, que se determina, paradoxalmente, pela unidade.

Onde outros seriam atingidos pela divisão e pela dispersão, Villani encontra matéria e motivo para concentração e reunião .

Ali onde alguns se perderiam nos abismos da esquizofrenia, o artista abre, ao contrário, uma vereda que, apesar das várias circunvoluções, segue à risca a obsessão de um olhar que busca revelar a face secreta das coisas.

Não se vive impunemente entre duas geografias sem querer mudar o mundo. Contê-lo num formato de quadrado negro.

Costurar seu direito e seu avesso. Imobilizá-lo no funcionamento de uma máquina celibatária ou, inversamente, fazê-lo girar indefinidamente para ativar o ritmo cadenciado de uma marcha. Inventar para povoá-lo uma multidão de figuras híbridas etc., etc. Estas são algumas das apostas imprevisíveis que alimentam incessantemente a obra de Julio Villani. Que a constituem, em total liberdade.

Fio, linha, risco, laço, rede, nó… a arte de Julio Villani é habitada pela idéia de vínculo. Ela estrutura todos os trabalhos do artista, lhe é consubstancial. Sua arte se caracteriza consequentemente pela idéia de polo, de contraponto, de extremidade, às vezes de oposição. Assim sendo, ela se constrói a partir da organização de um vaivém, de um vai-volta, de uma permuta, e é no âmago desta última, nesse “entre-dois”, como diz o próprio artista, que tudo se dá.

1 + 1 = 1 | Philippe Piguet

Entrar na obra de Julio Villani é abandonar todos seus à priori, é aceitar questionar hábitos perceptivos, deixar-se guiar pelo humor de um pensamento peregrino, que nenhum dogma conduz.

O artista se deleitou durante muito tempo com a prática de uma verdadeira antropofagia artística, alimentando-se das mais diferentes propostas diretamente na fonte.

Se ele não esconde o fascínio exercido sobre ele pelos índios, com seus usos e costumes e sua inesgotável capacidade de invenção plástica, ao mesmo tempo reconhece a preponderância do exemplo de Arthur Bispo do Rosário. Este marinheiro e boxeador, sofrendo de esquizofrenia paranoide, afirmava ter sido instruído por Deus a compilar um inventário do mundo, que Lhe mostraria no dia de sua passagem para o Além. Internado, passava horas intermináveis em sua cubículo costurando e fabricando os mais variados objetos a partir dos materiais que abiscoitava aqui e ali em seu cotidiano confinado.

Particularmente sensível à arte de outro de seus compatriotas, Alfredo Volpi, mestre incontestado da cor e autor de uma síntese depurada das imagens que compõem o repertório popular brasileiro, Julio Villani confessa ao mesmo tempo que a descoberta de Mondrian transtornou inteiramente sua visão de mundo. Numa primeira etapa, ela o levou a desenvolver uma obra caracterizada por uma geometria sutil e sensível, muito sintonizada com a de Lygia Clark, com suas pinturas desdobradas e suas esculturas Transformáveis. Do dadaísmo ao novo realismo, de Duchamp a Broodthaers, passando pelo cubismo, o surrealismo e outros artistas como Torres-García e Oiticica, a obra de Villani se apresenta, assim, numa heterogeneidade de formas e conteúdos que demonstra o princípio de apropriação que a funda. 

Percorrer a obra de Villani é também dar-se conta que a arte ainda pode responder à questionamentos existenciais.  A questão da identidade, subjacente a seu procedimento, não é apreendida apenas a partir da questão da linha, seja ela de separação, de união ou de equilíbrio, mas por todo um trabalho em torno da memória.

O processo de recuperação adotado por Villani e o tipo de reciclagem a que ele submete os objetos que integra são sua forma de realizar a conjugação de duas temporalidades para melhor construir uma nova. De um lado, há o objeto tal como ele é, com o qual o artista compõe; do outro, há esse “quê” de estranho que ele lhe sobrepõe e é no arranjo dos dois que a arte encontra sua razão de ser. A partir de um lote de antigas fotografias garimpadas em mercados de pulgas, Villani inventou para si uma família – sua “família francesa”, diz ele. Levando em conta a história de uns e outros que esses documentos lhe contavam, “cometeu” diversas intervenções, o que lhe permitiu achar seu lugar – melhor dizendo, fazer seu ninho. Entre geologia e genealogia a distância é mínima: uma mesma dimensão de palimpsesto caracteriza a idéia da sedimentação do espaço e do tempo. É por um processo análogo que a arte de Julio Villani se constitui e adquire corpo e raiz, independentemente de qualquer consideração de fronteiras.

CONTOS DE GULLIVER | Philippe Piguet

É preciso ter visto seu ateliê para apreender o universo quase improvável de Julio Villani. Radicado há anos em Paris, o artista é à imagem de sua produção: dificilmente categorizável. Ao menos ele nunca está onde é esperado, ou onde pensamos encontrá-lo. É que Villani é um inventor, e adora apossar-se de uma situação, de imagens ou de materiais, para reinvesti-los sem delongas e fazê-los adotar uma nova linguagem, desviar para uma visão defasada, sem jamais privar-se de humor, nem de crítica, nem de poesia. Pelo contrário: ele gosta de mesclar isso tudo, do seu jeito, longe das trilhas balizadas ou dos ventos encanados da moda do momento.

A dimensão lúdica de seu trabalho não provém nem de uma deserção que lhe permita ignorar o real, nem de uma postura assumida para mascará-lo e responder assim a sabe-se lá que inquietude. É, pelo contrário, uma maneira de salientar o “pouco de realidade” a que André Breton consagrou um importante texto em 1927 – Introdução ao discurso sobre o pouco de realidade – e que Jorge Luís Borges revisitou em 1941 em sua obra intitulada Ficções. A reflexão sobre o fantástico que este último aí desenvolve, arrimando-o em uma relação consubstancial à noção de literatura – concebida sobretudo como uma fabulação e nos projetando aos confins da experiência – encontra um eco particularmente manifesto na abordagem plástica de Julio Villani.

A exemplo do escritor, sua arte busca uma forma de antinaturalismo que se abstém de qualquer propósito narrativo. Ela remete à invalidação de todo referencial cognitivo, procura emboscar o real nas convenções de seus prenúncios, abala os alicerces de toda racionalidade intelectual. Em suma, a arte de Julio Villani é regida por um pensamento subversivo que lhe permite por em dúvida o real. Assim, sua noção de representação não escapa da metáfora, posto que a realidade à qual nos remete não pode ser apreendida senão no contexto de um discurso metafórico.

O inventário da obra de Julio Villani inclui uma escultura composta por três imensos bilboquês em madeira torneada, que o artista instala no chão como as peças de um jogo abandonado por gigantes de passagem. A brincadeira consiste em atirar a bola para o ar de modo que, ao cair, ela se encaixe na haste. Símbolo de uma perfeita completude entre duas entidades destinadas a associar-se, o bilboquê é um objeto carregado de sentido, ao mesmo tempo emblemático da relação entre a vida e a morte, o homem e a mulher, o particular e o geral, o yin e o yang etc., o conjunto bola-haste-corda compondo uma trindade singular. Aqui, não são mais simples brinquedos, mas elementos de um teatro que sua monumentalidade remete aos contos que têm como heróis Pantagruel, Gulliver ou Micromégas. [1]

O artista não levou muito tempo para reagir e replicar à arquitetura da abadia de Saint-Jean d’Orbestier – particularmente ao possante jogo das ogivas em pedra clara que ritmam o espaço ao longo da nave. Villani nelas viu a forma abaulada dos frágeis arcos metálicos sob os quais o jogador, fazendo uso de um malho e seguindo um determinado percurso, deve fazer desfilar as bolas do jogo de croquet. Julio Villani gosta de subverter os dados com os quais é levado à compor, seja deturpando-lhes a função, seja proscrevendo-os a outro registro, seja transformando-os em sua essência profunda até atribuir-lhes uma nova identidade. Aqui, ele optou por transmutar o recinto sacro em área de jogo, mas um jogo antigo, que sua monumentalização catapulta ao grau de fantasia, quiçá de fábula – para resgatar os dois termos borgeanos.

Contrapondo patrimônio, religião, humor e visão onírica, Julio Villani inscreve sua proposta em cheio no campo da pós-modernidade. Um quê de surrealismo, se não de surreal, permeia o que elabora; algo que lembra a recomendação que fizera André Breton a suas tropas, encorajando-as a dar corpo ao que viam em sonhos. Com uma diferença notável: Julio Villani é um sonhador acordado. O espírito e os olhos sempre atentos ao mundo que o cerca, percebe rapidamente sua “pouca realidade” e, em um piscar de olhos, transforma-a em outra coisa, totalmente inédita. Parece mágica – no melhor sentido da fórmula-culto “mágicos da terra”, usada para definir o que são os artistas – e nos convida a imaginar o mundo à margem dos cânones e das convenções.

De pelo menos uma coisa Villani pode ter certeza: não sairemos ilesos da experiência que ele nos propõe.

 

[1] N.T. Gigante de 32 km de altura que falava mil línguas, Micromégas – personagem de um conto de Voltaire – é exilado de sua estrela natal Sírius e viaja pelo universo em busca de um mundo melhor.