
ALL ABOARD | Judicael Lavrador
“All aboard”. Todos a bordo. É o título de uma obra feita sobre e a partir de uma foto de família encontrada pelo artista em um mercado de pulgas, sobre a qual colou recortes de papel encharcados de tinta. Quem sobe e se aperta a bordo? E antes de mais nada, a bordo do que? Nossa embarcação aqui é antes de mais nada este livro, essa soma (substancial) de obras ecléticas em seus formatos, meios e suportes, e que encontram classificadas por categorias, por capítulos cujo número (sete: um + um + um …) não deve, no entanto, esconder o fato de que mantêm relações fortes entre si: todos se apegam aos mesmos fios entrelaçados a cada vez de maneira muito diferente.
Trataremos aqui portanto de colagem e de imagens garimpadas, de cor e de preto e branco, de abstração e figuração, de jogos e móbiles, de família e de animais. Eis quem embarca, por sua própria conta e risco. Pois, a linha de flutuação da obra de Julio Villani varia e às vezes oscila perigosamente. Balança segundo uma dinâmica alimentada por intuições e sequências, por associação de formas, significados, palavras, geografia, que lembra a maneira desinibida, impertinente e lúdica com que procedia Dada. Assim, ainda que explorando as famílias de obras separadamente, propomos passar por cima das categorias saltando de uma seção para outra, sem interromper o fluxo do texto.

COLAGENS | Judicael Lavrador
Manchas coloridas, apresentadas em certa ordem, pontos, linhas, cores primárias: o registro pictórico parece familiar. Remete, diríamos, a uma abstração geométrica derivando diretamente uma tradição de vanguarda europeia do início do século XX. No entanto, a pista é falsa. Ou no mínimo, parcial. Porque essa abstração colorida e divagante cultivada por Julio Villani deriva antes de uma tradição vernácula, tradicional e popular do Brasil. Onde a abstração toma até as calçada. Ninguém, portanto, pode se vangloriar de ser a origem dessas formas e composições angulares ou circulares repetitivas e organizadas, uma vez que se encontram ha tempos em motivos populares. As vanguardas apenas as aclimataram.
Quanto a Julio Villani, podemos perceber a flexibilidade com que adapta essa grelha modernista às imagens, acompanhando, estendendo, destacando o gesto de um personagem, exagerando a inclinação da cabeça, vestindo outro. A pintura cinética diverte-se assim com as meias listradas das meninas e as listras que formam no fundo as tábuas de uma paliçada.
Sua paleta – verde tenro, amarelo ensolarado, vermelho brilhante, ou ainda branco de gesso ou preto carvão – contrasta com o preto e branco das impressões granuladas. Além disso, a cor é aplicada de forma muito manual, palpável, em sobre-camadas um tanto oleosas. Note-se: o papel que embebem baba às vezes sobre as fotos, formando uma aureola que participa definitivamente da composição. Esse toque está muito longe do gesto geométrico minimal e se baseia bem mais em uma abstração tangível, que negocia com as imagens e o grão de sua superfície, com o real e o suporte.

TENSÃO (Instabilis) | Judicael Lavrador
Clac! A atrelagem ameaça romper. A marreta, capotar. A bola, rolar longe, bem longe. O fio da obra de Villani (que devemos seguir ou desenrolar) leva aqui a assemblages de objetos que formam espécies de móbiles, onde pequenos objetos eloquentes se encontram suspensos: um dedal, uma casinha (na ponta de uma machadinha), uma boneca russa ou uma bola de bilboquê.
Elementos cujo tamanho, minúsculo, indica estarem sujeitos a uma abordagem ampla do mundo, em seus jogos permanentes de equilíbrio e tensão.
É o sistema quase cósmico aos quais pertencem que é aqui representado, como astros de uma constelação. Seus Instabilis são esculturas simultaneamente cósmicas e domésticas de um mundo onde o equilíbrio e a existência de toda e qualquer coisa depende de outra, onde tudo é articulado, aferrolhado ao destino alheio – o outro podendo tanto ser um aliado quanto uma ameaça, peso ou contrapeso, capaz de aguentar o tranco ou, ao contrário, estar prestes a ceder; o empuxo é possível a todo instante.
Eles tornam sobretudo visível o efeito dominó: se uma corda se solta, se outra desliza, arrasta todo o conjunto em sua queda. É o curso das coisas, o efeito das asas da borboleta no movimento do mundo, suas interpenetrações em cascata. Potencialmente. Esta visão dinâmica e macroscópica não se limita portanto a revelar considerações plásticas: a escultura aqui não é um bloco estático, maciço e uniforme. É uma aliança de materiais e de formas heteróclitas porém solidárias, que se portam e se suportam umas as outras. Dito de outra forma: nas duas extremidades do fio, nos dois extremos do mundo, os eventos são interligados, dependem uns dos outros. Não há cesura, não há fronteira que valha e que aparte verdadeiramente as partes.

BORDADOS | Judicael Lavrador
O fio do qual dependem tantas de suas esculturas vem inscrever no bordado, no branco dans lençóis, linhas gráficas, linhas de palavras e linhas geográficas. É preciso saber que essas obras vão e vêm do ateliê do artista ao de mulheres brasileiras que seguem ou interpretam suas recomendações. Villani é um costureiro amador. Então, criou uma espécie de alfabeto plástico para que essas mulheres pudessem seguir o fio de seus pensamentos e a inscrição do desenho no lençol. O qual, comprado no mercado de pulgas de Clignancourt, lhes é em seguida enviado com algumas indicações, depois devolvido ao artista que corrige ou confirma o bordado, o envia às vezes de volta, antes de receber sua versão final. O vaivém geográfico do objeto corresponde ao próprio ato de costurar: a agulha pica embaixo e depois em cima, aperta-se o fio, que tece pouco a pouco a trama da peça. Mais do que isso: os próprios temas concordam com essa trajetória ao mesmo tempo segura e errante.
Diagramas com setas, organigramas, planos seccionais de organismos, cartas celestes, levantamentos topográficos, glossários, umas espécies de pranchas panorâmicas: tantas formas de representações que tentam captar sistemas complexos ou sistemas em um único plano. Ou que tentam abrir um caminho através deles como se para melhor se achar. Mas a linha de conduta é sempre livre e ziguezagueia voluntariamente nos meandros de latitudes geográficas, de fusos horários e do léxico.
A linguagem é um dos sistemas em que Julio Villani mais gosta de navegar (à vista). As palavras, em francês e / ou português, respondem entre si por associações sonoras ou semânticas, revelando como o artista pensa e vê o mundo: brincando com palavras, significados, formas, se balançando entre duas línguas, várias latitudes, ele caminha sobre o fio à maneira traquina e sonhadora de um equilibrista.

FOTOS EM SÉRIE | Judicael Lavrador
O artista organiza por vezes o retorno massivo e repetido de certas imagens, imprimindo várias vezes a mesma fotografia para melhor voltar a ela e aos seus personagens, oferecendo-lhes assim mil existências possíveis, mil identidades, mil expressões, mil companheirismos. A pintura não tanto recobre os personagens (ou as paisagens), quanto os maquia e os realça, os envolve, os embala, os acompanha, os disfarça, levando em conta também o entorno.
Este retorno das mesmas imagens com um tratamento pictórico a cada vez diferente também se explica assim: as fotografias captam cenas de celebrações, as vezes muito posadas e um tanto solenes, daquelas cenas em que as famílias se reunem e festejam, por ocasião de um casamento, de uma comunhão, de um batizado. Desses momentos de reencontro, que marcam as etapas na vida de cada um. É como se os pequenos recortes colados seguissem o destino e o perfil dos membros da família ano após ano, cerimônia após cerimônia.
A pintura segue esse ronda das épocas, fazendo rodopiar os trajes e os papéis de uns e outros: ela se convida ao quadro e com ela traz fantasmas travessos, pequenos pontos coloridos que se tornam presenças auráticas. Ela é obviamente intrusiva, mas não uma intrusa: ela injeta um sopro de vida nessas imagens desvitalizadas, mantém com elas conversas íntimas. Um título como Tête à tête o indica: é um face a face entre a pintura e a fotografia, a abstração e a figuração fotográfica, o artista e os modelos mudos E essas festas, essas celebrações onde os patriarcas desfilam enquanto as crianças brincam no jardim, são também as da pintura e da infinidade de suas possibilidades (o que indica um título como Banco de dados: as formas, as cores, os traços são um banco de dados, a disposição).

ALMOST READYMADE | Judicael Lavrador
Indubitavelmente, Villani dispõe dessa agilidade manual que vem de uma sagacidade visual ou, palavra sinônima, uma forma de serendipidade: ele encontra algo, uma forma, uma trama, equilíbrios, sem realmente procurá-los. Os objetos que utiliza são recolhidos ou mesmo oferecidos ao artista sem que este saiba a priori o que deles fará. São coincidências, através das quais o artista, no entanto, recai sempre sobre suas patas. Ele dobra as coisas à sua medida, finalmente lhes impondo um estilo reconhecível.
Em particular, ele encontra a pista de animais, quase acidentalmente, em objetos do cotidiano, onde nunca se poderia imaginar que pudessem se aninhar; na pitoresca acoplagem de uma pá, um martelo, um arame esticado, uma panela, caçarola, frigideira, colher de pau, tubos de cobre dobrados, um funil. Desta parafernália montada com simplicidade emergem repentinamente o esqueleto, o perfil, as expressões dos animais, sozinhos ou aos pares. Um pato e um beija-flor, duas aves pernaltas, uma galinha e seu filhote, que a julgar pela pose da mãe – alças da panela criando punhos alados na cintura – parece estar levando bronca.
Ele ainda encontra uma tartaruga acaçapada em uma pá de carvão, uma girafa, um gnu, uma cobra, espécies exóticas que os utensílios e materiais domésticos que lhes dão de corpo não ajudam a domesticar. Pelo contrário: cada membro desse animado zoológico é retratado em pleno vôo, em movimento total, em extensão total, ainda que em poses corriqueiras.
De fato, não há a menor possibilidade de ver esses animais representados em algum momento sublime idealizado, aquele tipo de pose, por exemplo, do cachorro de caça em alerta, pata dianteira levantada, ou digamos correndo, esguio e saltitante. Não são essas representações espetaculares que o bestiário de Julio Villani incarna. São figuras livres, e não figuras obrigatórias, para usar termos de patinação artística ou de ginástica.
As longas patas das aves pernaltas fazem com que pareçam equilibristas bamboleando na ponta de longos fios. Acima de tudo, essas esculturas são voláteis: às vezes reconhecemos o objeto, às vezes o bicho. O acasalamento às vezes fica por um fio, mas às vezes é selado mais firmemente, mais secretamente, quando o animal e as coisas compartilham um mesmo elemento. Os jarros não dão à luz a galinhas-d’água por acaso …
As vezes, o título parece assim acobertar uma terceira presença, que deliberadamente enreda as patas nas teias da linguagem e das palavras. A linguagem para Julio Villani é um material plástico, flexível e versátil, bilíngue, português-francês, assim como sua cobra tem duas cabeças. Esses pássaros não são feitos de peneiras (passoire, em francês) por acaso …
Se realmente nos deixássemos levar pela brincadeira, poderíamos dizer que seu urubu não é nada jururu. Ele, como seus companheiros, passou principalmente pelo filtro de uma concepção muito específica de escultura. Uma escultura ancorada nos princípios de tensionamento de seus componentes. Uma escultura que compõe corpos e formas, contanto que fiquem aparentes as nervuras, os ligamentos e cordões que a sustentam.