A VIAGEM INFINDA DE VILLANI | Agnaldo Farias

Julio Villani cruza fronteiras geográficas, embaralha-se em um outro idioma, o francês – cada idioma, lembremo-nos, é uma forma particular de ser e estar no mundo –, com o mesmo interesse com que se aventura por sua memória, com que navega no tempo revisitando sistematicamente as experiências vividas na sua infância no interior de São Paulo: o calor intenso e espesso apenas interrompido pelos cordões de água que, abruptos, desabavam do alto lavando o casario de desenho simples – telhado de duas águas, janelas e porta na fachada concisa, árvore frondosa à frente intercedendo a nosso favor com o nanquim de sua sombra.

O mesmo artista que, cedo, ainda nos anos 80, fixou-se em Paris, talvez para ficar mais próximo dos deuses tutelares que têm por panteão alguns dos mais conspícuos museus do ocidente, sem se importar em cruzar as fronteiras das diversas formas de expressão, ousa mesclar as referências da história da arte com o trabalho vertiginoso sobre o corpo das linguagens que usa cotidianamente, como também com as roupas nítidas que antigamente quaravam sobre a grama verde para depois serem secadas nos varais como bandeiras prosaicas, com a água pura e fria que subia do poço por meio de uma roldana, com o barulho monótono e perfumado da máquina de beneficiar café, com os brinquedos e jogos como o bilboquet, o rouba-monte, a amarelinha, presenças corriqueiras numa paisagem que hoje jaz quietamente adormecida.

Adormecida? Mas então qual é o significado dessa exposição que hoje o artista nos traz? Porque é fato que tudo exala experiência, a começar pela boca do poço intitulado “Retrato D’Água”, um auto-retrato que, na prática, convida o espectador para que mergulhe o olhar no interior da terra e encontrar seu próprio rosto refletido. Como a aranha que retira de dentro de si o fio de linha que, tecido, lhe serve de abrigo e armadilha, o pensamento, imagem represada, é buscado de dentro dos abismos para então conhecer  a luz.

Em coerência com sua própria natureza, esse conjunto de lençóis exigiria ser exposto ao ar livre, contra o céu azul, enfunando-se, tremulando no ritmo variável do vento, como estandartes e bandeiras, como “roupas comuns dependuradas”. Os espaços expositivos serão sempre demasiado formais e elegantes, terminam por envolvê-los em circunstância e sisudez. E aproximando-se de cada um desses lençóis, reparando melhor neles, observa-se o apuro com que foram confeccionados, o trabalho anônimo das costureiras contratadas pelo artista. Todos eles possuem a mesma aura invisível de delicadeza. Sobras do trabalho minucioso feito com a ponta dos dedos premindo agulhas e perfurando o tecido para realizar, através de linhas azuis, pretas e vermelhas, as letras, números, e desenhos planejadas pelo artista.

E o que contam esses desenhos, quais os conteúdos bordados nesses planos moles e aconchegantes ao tato? São textos e palavras compostos por letras escritas em tamanhos diversos, textos e palavras combinados com desenhos esquemáticos do corpo humano e ainda textos e palavras submetidos a esquemas cartográficos. A primeira vista desconexos, lidos e relidos cada lençol mostra-se um mosaico que conjuga referências teóricas, afetivas e geográficas; uma cartografia que se vale de cifras múltiplas, como um corpo que acusasse na própria pele suas alegrias, suas angústias, seus desejos, seu trânsito por tempos e países, acumulando experiências e reorientando sua rota a cada passo. Nesse sentido, cada lençol como que descobre um ângulo do próprio artista, traz impresso as marcas de seu corpo.

E não é sempre assim? Afinal não custa lembrar o que são lençóis, para que servem. O tecido com que à noite nos cobrimos para então refletirmos sobre o dia, repassar os caminhos futuros, invadir o território dos sonhos. E não deixa de ser curioso constatar que regularmente, no geral uma vez por semana, lavamos o lençol para em seguida pendurá-lo no varal. Para que ele seque despojado de todo peso adquirido ao longo das noites passadas junto a nós? Pois isso não servirá para esses lençóis de Julio Villani, que levarão para sempre, indeléveis, suas marcas, como um diário de viagem cujas anotações se convertessem em cicatrizes.

REUNIR AS PONTAS SOLTAS DAS COISAS QUE ESTÃO NO MUNDO | A. Farias

A escritura poética é uma constante na obra de Julio Villani e ele a pratica sistematicamente como estratégia para apontar o caráter lúdico da língua, isto é, do pensamento e da expressão. Interessa-lhe o fluxo das palavras e o modo como que cada uma delas pode ser desmontada e reorganizada pelas sílabas, produzindo palíndromos, desvios de sentido, trocadilhos, aliterações, ruídos de sentido que no fundo são impulsos de liberdade de uma língua que não cessa de verter novos significados, que se nega a adormecer nas folhas secas de um dicionário como um animal selvagem falsamente domesticado pelo uso da força.

A bem dizer o artista se interessa por signos em geral, dos mais abstratos aqueles de fundo representacional. Em seus trabalhos as letras se juntam a números, traços, às manchas de um texto de um jornal qualquer, aos instrumentos utilizados pelo artista para realizar seu próprio trabalho. Em princípio tudo serve. Não há impureza ou elemento estranho. O artista opera com a diversidade, como que permanentemente tomado por um impulso infantil de curiosidade, movimento que o leva a unir o que está separado, a colecionar, a catalogar.

O artista viaja pelo mundo carregando dentro de si a régua com que mede as coisas que encontra, transita de lá para cá com a mesma voracidade divertida do papagaio que se alimenta ao mesmo tempo em que destrói as imagens que lhes caem nas garras; segue em sua busca ociosa, dirão alguns, não obstante necessária, segundo outros, dos aspectos constantes de um mundo aparentemente inconstante, um mundo de engrenagens desencontradas, antípodas mas que, estranhamente, funciona.

Julio Villani é um artista que joga com formas e seus sentidos. Seu trabalho consiste em explorar a ductilidade do signo ao mesmo tempo em que o relaciona com outro. Assim, seu corpo é simultaneamente lençol, mapa, texto, matéria maleável que dança ao vento. A mesma linha branca é o laboratório onde são fabricadas versões de tudo o que há, de bicho a gente.

Sua atividade pode ser descrita como quem joga um bilboquê. Quem jogou sabe: a mão que empunha o cabo é a mesma que impulsiona a bola de madeira de modo a que ela faça um movimento para o alto para cair encaixando seu orifício. Haste e esfera são coisas distintas. Para juntá-los exige-se destreza e muito cuidado para não machucar a mão com o golpe dado pela esfera em queda. Porém, quando o encaixe acontece, o resultado surpreende: a peça, antes composta por duas partes, agora é uma só. Assim pode ser encarado o fazer poético: uma ação que consiste em reunir as pontas soltas das coisas que estão no mundo.