
PARAÍSO (AQUI SE BORDA, AQUI SE PAGA) | Roberta Saraiva Coutinho
Segundo Davi Kopenawa, líder espiritual e político Yanomami, na cosmovisão de seu povo a queda do céu é uma ameaça constante. Em seu papel de xamã, anuncia: “Estamos apreensivos, para além de nossa própria vida, com a da terra inteira, que corre o risco de entrar em caos. Os brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham medo disso tanto quanto nós”.[1] Aos poucos, tanto a ciência quanto eventos climáticos cada vez mais perturbadores e perceptíveis parecem ecoar uma realidade equivalente àquela pregada pelo xamã em sua visão intrinsecamente mítica e poética do universo.
Nestes tempos sombrios de queda do céu, somente uma leitura poética do mundo é capaz de propor uma inversão: a de elevar o chão. É o que faz Julio Villani, na Capela do Morumbi.
Ele – que, menino, procurava no chão da fazenda dos pais, em Marília, as chamadas “pedras de raio”, associadas a meteoritos caídos do céu, mas na realidade vestígios arqueológicos dos povos originários – hoje recobre os visitantes com um pedaço de terra bordada no lugar do céu-paraíso comum nas igrejas barrocas.
Se, para os Yanomami, o céu é sustentado por hastes de metal, aquele imaginado por Julio Villani para a Capela do Morumbi vence a gravidade, com a garantia de contrapesos de cimento. Nessa contraversão, o artista faz-se acompanhar de Manoel de Barros, poeta mato-grossense dos olhos resolutamente voltados para o chão. “[…] gostar das coisinhas do chão, antes que das coisas celestiais […]” [2] e outros versos do poeta transformam-se aqui numa espécie de oração, que inverte a ordem dos valores vigentes neste mundo.
A obra de Julio Villani esteve sempre em diálogo direto com a poesia, tendo conversado com Jacques Prévert, Charles Baudelaire, Julio Plaza, com os irmãos Campos, entre tantos outros. E muito antes desta nossa era – por muitos entendida como Antropoceno, uma vez que todo o planeta, e todas as suas formas de vida, são afetadas pelas mudanças que provocamos –, outro poeta, Dante, invocava mito e cosmovisão para propor um caminho do inferno ao paraíso. Guiado por Virgílio, poeta romano da Antiguidade pré-cristã, Dante criou personagens-poetas que cruzam diferentes instâncias em um percurso por vezes íntimo, no sentido de um caminho espiritual pessoal, por vezes envolvendo analogias e elementos da sociedade em que ele vivia.
A referência à Divina Comédia, aqui, não se dá apenas porque tanto Dante quanto Julio são conduzidos em suas respectivas obras por poetas, nem por ser o Paraíso coisa geralmente ligada ao Céu, este que agora ameaça cair. É mais porque, ao estar em uma capela, a obra de Julio Villani inevitavelmente convive com a carga simbólica e a cosmovisão do ocidente cristão que, no caso da Capela do Morumbi, mescla-se concretamente com a terra, por meio de suas paredes em taipa de pilão, das ruínas de uma antiga fazenda de chá [3]. O Céu idealizado pela tradição cristã, que agora faz cair o céu de fato, no inferno climático e humanitário em que vivemos, apontado, há tempos, entre outros, pelos povos originários, condensa-se na terra colonial desse espaço, batida pelo escravo e pelo “caipira”.
Não é a primeira vez que o artista instala uma obra em ambiente religioso. Sua estreia deu-se com a criação de um lençol recobrindo inteiramente o dormitório da abadia cisterciense do Thoronet, no sul da França – o imenso bordado pairando sobre os sonhos dos monges que lá viveram no século XIII. O título da obra, retirado de uma citação de Derrida – Não se pode pensar o encerramento daquilo que não tem fim –, fazia alusão ao questionamento perpétuo do sentido das coisas e da impossibilidade de um fim em si mesmo. Já na Capela do Morumbi, um edifício de herança colonial paulista, Villani anuncia o fim no título da obra, em tom de profecia: Aqui se borda, aqui se paga.
Parafraseando Jean de Loisy, curador da mostra na França, Aqui se borda, aqui se paga é mais um mosaico das referências teóricas, emocionais e geográficas de Julio Villani. “Uma cartografia de múltiplas linhas, como um corpo que revela na pele as suas alegrias, as suas angústias, os seus desejos, a sua viagem por diferentes países e épocas.” Nesse sentido, os lençóis bordados de Julio, de onde nasce este grande chão suspenso, fazem lembrar a obra de Bispo do Rosário, em seu esforço obsessivo de organizar as coisas do mundo em forma de narrativa bordada, numa preparação delicada para o Dia do Juízo Final. Ambos têm em comum uma proposta estética que organiza e apresenta uma mesma lógica: a de valorizar as “soberbas coisas ínfimas” [5] que nos cercam.
O trabalho delicado e meticuloso de linha e agulha de Paraíso, feito de tecido e novelos de lã colorida, foi realizado a várias mãos, no ateliê de trabalho de Lina Bo Bardi, arquiteta italiana que soube tão bem enxergar e dar a ver a sofisticação da mão do povo brasileiro em sua cultura material.
E é justamente na Casa de Vidro, por ela projetada em 1951, na mesma época em que a Capela se reerguia (1950), que Julio Villani apresenta, simultaneamente, a mostra Museu de Tudo [6]. Com título emprestado a João Cabral de Mello Neto, o artista celebra aqui diferentemente as coisas ordinárias que nos cercam, por meio de um conjunto de criaturas curiosas, inventadas a partir de objetos do cotidiano.
Coincidência do calendário – ou prova da concordância entre a obra de Julio Villani e a visão de dona Lina – uma das “criaturas” do artista encontra-se exposta na mostra Ensaios para o Museu das Origens [7] (baseada no projeto histórico do crítico Mário Pedrosa), em diálogo com Tarsila do Amaral e Mestre Valentin, como imagem do acervo do MAM de Salvador, que Lina cunhou.
Este roteiro por si só já revela a obra de um artista múltiplo, de estirpe moderna, coerente com seu jeito de ver o céu na terra.